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domingo, 2 de janeiro de 2011

Uma vida em sonhos
 
Belvedere Bruno



Vivia imersa em sonhos.  Decerto neles existiam as  cores,  os sons e os sabores que há muito haviam sido subtraídos de sua vida sem que soubesse a razão.
Era enternecedora a suavidade em seu semblante quando adormecia se aconchegando entre perfumados travesseiros e edredons. A vida  ao vivo já  perdera  a  graça. Acordada, não sabia quem era filho, neto, bisneto, sempre trocando seus nomes e falando sobre fatos remotos como se fossem atuais. O ontem parecia o  hoje  de forma fragmentada.
Afagando seu rosto, a chamávamos pelo nome suavemente,  para que não despertasse assustada: “Marta, Marta... ”.  Ela entreabria os olhos, e sorríamos, ao perceber que ainda se reconhecia. Esperávamos suas palavras, a interação no nosso dia a dia, mas Marta logo buscava o ontem, proferindo frases desconexas, com o olhar vago, constantemente  a murmurar: “- Pedro... Pedro.... ”
Os dias se passavam e mais Marta se isolava da vida fora dos sonhos, cujo enredo só ela sabia. Eram paragens que sequer imaginávamos como seriam.
Naquela madrugada, talvez pela força do vento, caiu a imagem do santo de sua devoção juntamente com o vaso de margaridas, espatifando-se ambos. O amanhecer, no entanto, chegou  pleno de azul e Marta parecia sorrir, como se abrisse os  braços para o mundo. Os olhos já  não miravam o vazio. Pedro conseguira, enfim, transpor  a barreira do tempo e do espaço  e, delicadamente,  a conduzia  para outra dimensão, ali, onde ela, de fato,  sempre fora  feliz.
De mãos dadas, atravessaram o grande portal. Do  outro lado  da margem, enternecida, ainda ouvia vozes que a chamavam:  ” Marta... Marta ...” Seguindo o caminho, não olhou para trás.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

ADEUS MEU VELHO

Jorge Luiz Vargas

Boa noite meu velho! – Disse eu àquele senhor, sentado sozinho no banco da praça, olhando quem passa, com seu ar cansado, rosto
marcado, barba branca e longa, olhar perdido ao longe, ombros caídos, mãos trêmulas segurando seu cajado, usado para ajudar suas pernas em seus últimos passos, sorriso escondido de quem está chegando ao fim.
- Boa noite meu filho
– respondeu o velho com sua voz rouca, baixa e muito cansada...
- O senhor não está bem? – perguntei...
- Estou cansado... Minha hora está chegando meu filho. Já cumpri minha missão. Todo mundo está esperando minha partida. Alguns com emoção. Outros com tristeza no coração... Estou contando as horas. Parece que foi ontem que fui recebido com festa. Até aqueles homens e mulheres que vivem ao relento me esperavam chegar. Quando cheguei o mundo todo já estava enfeitado de luzes, fogos coloridos e alegria...A esperança era a companhia de todos, com suas roupas novas e cada ser com sua cor predileta e suas simpatias acreditando que tudo seria diferente quando eu chegasse. E na contagem regressiva, muitos choravam, outros dançavam, alguns rezavam, outros buscavam dentro de si a esperança. Mas todos comemoravam a minha chegada. Eu representava, naquele momento, uma nova vida, novos amores,
novos sonhos, retornos esperados, retomadas de paixões, e principalmente a paz.
- É verdade – interrompi - Todos nós esperamos melhorar a vida, as relações, a sorte, as paixões, conquistar novos amores, manter o amor, cultivar pra não perder, se encontrar, nova vida viver. Eu também, meu velho. Eu também sonhei muito. Quis muitas coisas. Sonhei em encontrar um grande amor. Acabei encontrando. Tantas coisas aprendi. Tanto ganhei. Tanto perdi.
- Pois é meu filho – disse o velho me interrompendo também – Está quase na hora de ir. Em mim muitos sonhos foram realizados. Muitos amores, muitas pessoas, muitos sonhos, nasceram e morreram. Muitos foram felizes. Outros tantos sofreram. Alguns contaram o tempo para eu passar logo. Outros torceram para que eu parasse e deixasse que eles vivenciassem aquele momento de amor, felicidade, alegria sabendo que talvez jamais se repetiria.
- É verdade meu velho! – disse eu - Novamente eu sou testemunha disso. Também quis que o tempo parasse e que ele me deixasse ali, naquele exato momento, e nunca mais desse um passo à frente. Mas o tempo é implacável, Ele não para e nem tem sentimento. O tempo é frio!
- Meu filho, tenho que ir...  – Me interrompeu o velho dizendo - Meu presente está chegando ao fim. Ontem fui futuro. Já serei
passado. Página virada, talvez por alguns esquecida ou por outros lembrada, mas já vejo a contagem regressiva para a minha morte, o fim da minha jornada.
O velho, já muito cansado, me entregou um livro e disse: - É meu presente de despedida.
Peguei o livro e no título estava escrito 2011 e 365 páginas numeradas e em branco. Então perguntei – Não tem nada escrito, meu velho? E então ele disse:
- Este livro é seu. Nele você escreverá mais um capítulo de sua história. Por isso as páginas em branco, pois é você quem dá o rumo da sua vida, dos seus passos. Você e só você é capaz de escrever cada capítulo de sua história de vida. Escreva meu filho, faça de sua vida aquilo que você deseja.Sonhe, mas não deixe seus sonhos dormindo no seu travesseiro, acorde-os e realize cada um deles... Tenho que ir... – me disse o velho com seu ar cansado e triste - Estou morrendo... Quero que você, depois de minha morte, comemore a chegada do novo ano. Com ele novas esperanças também chegarão e com certeza o novo ano trará muita paz, alegria, amor, felicidade, fé e esperança para todos... O mundo está muito embrutecido, meu filho... As pessoas se matam por nada, é bala perdida achando inocentes, é bandido solto, zombando da gente, é tanta intolerância, tanto desamor, vocês não procuram um tempo para serem solidários, para entender e conversar com Deus. Vocês precisam entender o que é amor pelo próximo e dar mais valor à
vida. Tomara que o ano novo possa trazer isso para todos...Enquanto o novo ano chegava e era comemorado por todos com festa, o velho morria e ninguém mais dele se lembraria.

Adeus ano velho... Feliz ano novo! E tenha pressa de viver um ano melhor, de reencontrar a si e ao outro, tenha pressa de se declarar, de se mostrar, de ser feliz. Tenha pressa, porque a gente não sabe quanto tempo o tempo nos dará e o tempo passa
com muita pressa. Então, tenha pressa...

O ano acabou... Os sonhos e as esperanças se renovam...
Seja bem-vindo 2011!
Seja bem-vinda esperança!
Jorge Luiz Vargas

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Jorge Luiz Vargas
Cônsul da Associação Internacional Poetas del Mundo para o Distrito Federal
Brasília - DF - Brasil
(61) 8180-6202
site: www.amorempoesia.com.br
Skype: jlvargas.bsb
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sábado, 4 de dezembro de 2010

A gente precisa se ver mais 



 Affonso Romano de Sant’Anna

“Meu amigo realizou o sonho de uma nova e bela casa e estamos, alguns casais e amigos, ali, para jantar e conversar. Matar saudades.
Vivemos as peripécias dos anos 60, aquela coisa dos hippies, da utopia e da repressão. Estamos já de cabelos brancos, os que têm cabelos. De óculos. Falamos de filhos, de netos, de cachorros. São todos, de alguma maneira, bem-sucedidos em suas profissões. E, naturalmente, falamos mal do governo. Deste ou de qualquer outro.
Alguns foram viver no estrangeiro  exilados, outros foram para estudar. Mas voltamos. E, no clima amigável da conversação solta, a memória vai se aquecendo, os fatos vão ressurgindo, e, de repente, abole-se o tempo, confunde-se o ontem e o hoje.
É tudo celebração.
Celebração da vida vivida como um filme entrecortado que tivesse tido vários diretores.
- Onde estava você quando mataram Kennedy?- Onde estava você quando Getúlio se matou?- Onde estava você em abril de 64?
- Where were you when they crucifica My Lord?
Quando saem todos, lá pelas duas da manhã, uma frase circula no ar: "A gente precisa se ver mais".
A gente se promete telefonar, marcar encontro, enfim, "se ver mais".
Frase banal.
No entanto, penso em como é diferente quando falada entre jovens. Aliás, jovem não fala assim. Diz: "Cara, pó! Você sumiu! Vamos  no apê de fulana hoje, vai rolar um agito legal lá."
Ou seja, os jovens marcam encontros para dominar o espaço. Incorporados às tribos noturnas, ficam zanzando de um bar para outro, de uma praia para outra, de um esporte para outro, conferindo espacialmente o que está ocorrendo em outros lugares. Os jovens estão desbravando corpos, e para eles o mundo é uma coisa muito ampla e distante, algo que começa depois do círculo de giz narcísico que os contém.
Entre pessoas maduras, é diferente. Desbrava-se o conhecido. O conhecimento é re-conhecimento. Não é o espaço, o tempo é que importa.
Estar juntos é como estar ao redor de uma fogueira recontando a própria vida. Isto se parece também com guerreiros meio exaustos, com meia glória apenas, contando fragmentos de uma batalha ganha e perdida. E já que os presentes viveram experiências semelhantes, um é a memória do outro, o espelho do outro.
É um exercício de reunir fragmentos de vida, reachar em nós a imagem de ontem e reter um pouco o presente que se esvai. Tem, de certo modo, o sentido de carpe diem. Um carpe diem meio retroativo, olhando o retrovisor. Estamos curtindo o presente densamente, como quem toma um velho e bom vinho.
Mas há algo mais além da constatação de que os jovens vivem mais no espaço e os mais velhos vivem mais no tempo. Para os mais idosos nessas reuniões, a própria linguagem tem outra função.
Lingüisticamente, os jovens têm mais uma fala denotativa e fática, cheia de exclamações, interjeições, poucas palavras. Não é uma linguagem dissertativa prenhe de memórias, reverberando muitas conotações como proustianamente é o caso dos adultos.
O  jovem conversa sobre o presente e faz rápidas alusões ao futuro. O adulto conversa retroativamente. O passado cresce continuamente, ilumina o presente e delega aos outros o futuro.
"A gente precisa se ver mais" significa também que nosso tempo está se esgotando, e reencontrar-se é, por um instante, conseguir suspender o tempo, povoar, alargar mais a própria vida. Parece que cada um tem uma mochila, uma bagagem qualquer, e que vai abrindo esse farnel de lembranças a ser servido na mesa comum.
Essa coisa de estar juntos, vou dizer, nem precisa ser algo muito palrador, muito risonho, festivo. Existe um tipo de companheirismo silencioso, tipo cinema mudo, ou, mais pateticamente, tipo diálogo mudo de sombras. Se alguém quiser ficar calado ali, pode.
Uma vez li que Samuel Beckett e não sei mais quem costumavam se sentar num café em Paris e ficar ali silenciosos madrugada adentro olhando, para onde? Para fora e para dentro, num silêncio estranhíssimo. Quer dizer, calados, se faziam companhia. Um animado papo silencioso.
Lembram-se daquela canção do Paulinho da Viola em que duas pessoas se cruzam rapidamente pela rua e vão prometendo se ver, se telefonar, enfim, reunir o que a vida dispersa e fragmenta?

Pois é, a gente precisa se ver mais...”

(Affonso Romano de Sant’Anna – Tempo de Delicadeza – Coleção L & PM Pocket – pag. 11)

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

MEMÓRIA DO ESQUECIMENTO

 

Venho de uma família que queimava fotografias. Minha avó dizia que a fumaça de imagens embebia a alma com lembranças e deixava impregnado o cheiro vivo dos ancestrais.

Mas não foi sempre assim. Creio que esta tradição foi criada para aquecer o frio das ausências de uma geração entre mares e explicar os conflitos que só o distanciamento do tempo tornaria possível.

O bisavô Rocco gostava de retratar a vida cotidiana para expedir às pedras de sua origem italiana. Era uma forma de crescer e de assumir forma corpórea no pequeno lugarejo esculpido entre duas grandes e legendárias pedras – Saxum e Pietra di Castalda – na característica paisagem lunar da Lucania. Desejava ser recordado como a natureza dos minerais duros e sólidos que permanecem.

Despediu-se de Sasso di Castalda nos passos lentos da procissão de San Rocco e desembarcou no porto do Rio de Janeiro ainda com os ecos dos fogos de artifício da festa do padroeiro. Tinha apenas treze anos.

Mezzogiorno. Uma história a ser redescoberta entre as fumaças e as fantasias quando os ponteiros sobrepostos apontam para o hemisfério norte, o território das recordações, e insistem em explorar as pedras do tempo.

A geração da minha avó interrompeu as tantas travessias e parou o tempo com a metáfora de uma lareira que manteria o fogo: “C’è ancora il fuoco”. Encontro um retrato antigo em preto-e-branco de um senhor com olhar determinado. A prova da violação da saudade. Conheço o bisavô. Encontro, na imagem, a testa e os olhos do meu pai, os lábios do meu tio, os horizontes longínquos do meu pensamento...

Passo dias com fragmentos de meios-tons manifestos. Quase reais. Não fui impregnada pela fumaça de imagens e sinto vontade de resgatar as cinzas na fornalha familiar para compreender a história numa trilha de palavras. Emigrar da pátria do esquecimento.

A narrativa de pedras e raízes encerrará nas reticências do futuro, em novas fumaças, em reiteradas fantasias, mas... Mezzogiorno. Ponteiros sobrepostos de uma bússola teimosa. Escondo o retrato antigo entre os coloridos presentes e parto em busca do cais intermitente da história.

Helena Sut

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O VOO DO PÁSSARO

     Nas mãos em concha, a água da torneira e as suas lágrimas misturaram-se, mais uma vez. Esfregou os olhos, as orelhas, o pescoço… E a tosse, que lhe vinha do fundo da alma, deixou-a exausta. Olhou o espelho e este devolveu-lhe um olhar pungente, num rosto que o tempo e o cansaço começavam a deformar.
       - Isto passa… Estou só a lavar a cara – murmurou, tentando reunir forças para se afundar, de novo, no sofrimento das panelas, do fogão eléctrico, do formigueiro dos pulsos arroxeados…
       - Uma pessoa habitua-se, não? Talvez assim as coisas se tornem mais fáceis… - pensou, respirando fundo. No entanto, ficou, durante alguns minutos, a olhar para dentro de si própria.
Como podia ainda amar aquele homem? Tinha ficado refém da sua beleza? Edmundo era alto, esbelto, mas os seus belos olhos castanhos tinham o brilho do aço e o seu riso demoníaco espetava-se como um alfinete na sua alma. Ele farejava a sua tristeza como pasto do qual se sentia sempre faminto. Porque suportava ela aquele humor corrosivo, aquelas palavras que lhe zuniam dentro do ouvido e lhe caíam  na alma como praga maldita que tudo devasta? Porque não o abandonou, quando ele lhe deu aquele empurrão que a marcou para sempre? Porque tentava entender o seu  comportamento ? “A falta de compaixão é patológica”, dissera um neurocientista famoso que ela admirava muito. Ele afirmara que o comportamento humano tinha uma base neurobiológica, mas não deixava de acreditar na capacidade que temos de controlar, voluntariamente, respostas automáticas, impulsos básicos que nos podem levar a cometer actos cruéis. E ela também acreditava na força do livre arbítrio. Pensando bem… não estava resignada. Sabia que a resignação atrofia a alma, mas…porque gostava de o ver dormir serenamente como um anjo? Amava-o, mais do que nunca, naqueles momentos. Ah, se pudesse beijar os seus olhos pestanudos, a boca sensual, os sedosos cabelos grisalhos, as mãos pousadas na dobra do lençol… E como seria bom poder conversar com ele, mostrar-lhe a sua alma… No entanto, ele tinha sentimentos, não tinha? Porque amava tanto os animais, especialmente a Minnie? Era capaz de dar a vida por ela! E estava sempre a festejar a sua presença! Não lhe queria mal, mas invejava-a em segredo. Porém sentia que ele odiava, facilmente, as pessoas. Tinha poucos amigos.  Como podia amá-la, então? Mas porque teria ele casado? Às vezes, sentia a desistência muito perto de si como um poço negro…Sentava-se no bordo, a olhar para o fundo, a querer saltar para dentro, mas acabava por ficar sempre ali, exausta, atordoada como pássaro cativado por serpente.
      De súbito, ouviu fortes pancadas na porta. Ficou parada como animal perseguido. De um momento para o outro, a porta abriu-se e ele entrou, com a mão no cinto das calças.
       - O que estás aqui a fazer na casa de banho, há tanto tempo, Margarida? – berrou, com as narinas muito abertas. – Não vês que quero dar  banho à Minnie, idiota?! Além disso, é meio-dia e ainda não começaste a fazer o almoço! A que horas vou chegar à minha empresa, não me dirás?! E sabes que aqueles reles trabalhadores se aproveitam logo da minha ausência, não sabes?!...
       - Vou já, Edmundo… Desculpa! – murmurou Margarida, saindo, cabisbaixa, da casa de banho.
       - O que é isso? Agora não olhas para mim? -  gritou ele, à porta, mostrando os dentes e as garras.  “Desculpa… desculpa… desculpa…” é só o que sabes dizer?! Um dia, vais acordar transformada em burra! E estás a ficar uma barrica atarracada!  – ripostou, soltando uma gargalhada feroz. -  Não sei porque casei com tal mosquinha morta! E já lá vão mais de vinte anos! Não serves para nada! O fogão que o diga! E a cama também! Só engravidaste uma vez . Era uma rapariga. Tinha de ser! E morreu, claro!...
        Naquele momento, o olhar de Margarida voltou-se para ele, num assomo de dor e de revolta. O coração batia-lhe na garganta.
       - Não te lembras do empurrão que me deste, Edmundo? – acabou por dizer, com lágrimas na voz, como quem morre nas próprias palavras que pronuncia.
       - Se a Minnie não estivesse à espera do banho, engolias já essas palavras, estúpida Margarida sem pétalas! O meu mal foi não te ter educado à chibata!...- gritou ele, lançando-lhe um olhar ríspido. – Vem cá,  Minnie,  meu amor… Tu é que me entendes!
       E Edmundo agarrou ao colo uma cadela pincher,  preta e branca, de coleira e laço cor-de - rosa, que lhe deu, de imediato, uma grata lambidela no queixo.


       No dia seguinte, um morno sol primaveril inundava já a pequena cidade, quando Edmundo acordou em sobressalto.
       - Está quieta, Minnie! Olha que me rasgas os lençóis! O que se passa? Ela não está aqui no quarto? Que novidade, meu amor! Foi para o sofá da sala, como é costume. Ela é doida, sabes? Ontem fez o empadão de carne que eu adoro e quis jantar à luz das velas, vê lá tu!  Vá, minha linda, hoje é domingo! Deixa dormir o teu amigo!
        Porém, ao contrário do que era habitual, a  cadela não lhe obedeceu. Saltou  para cima da cama e  puxou o cobertor para trás.  Os seus latidos  faziam lembrar  choro de criança.
       - Pronto, Minnie! Vou já! Sabes que não te posso ouvir chorar assim…
       Edmundo esfregou os olhos sonolentos, levantou-se  e seguiu, lentamente, a cadela até à sala. Móveis e objectos decorativos, sem  vestígio algum de pó,  brilhavam ao sol da manhã. As almofadas estavam espalhadas no chão. Edmundo aproximou-se e encontrou Margarida estendida no sofá, com os lábios arroxeados, o rosto cor de cera, o corpo gelado e rígido… Parecia olhá-lo fixamente nos olhos. A seu lado, estava um frasco vazio de soporíferos.
       - E agora?!... Tenho de aquecer comida enlatada? E quem vai fazer as compras, Minnie?


Maria João Oliveira [ Escritora, Professora- Portugal]
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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA



“Louca, louca, estou farto de te aturar…!”, gritava amiúde, independentemente de a questão geradora da discussão, se é que havia discussão, ter sido motivo que bastasse para aquela reacção intempestiva. Por vezes, um leve comentário, só isso, ainda que alheio a qualquer pontual problemática conjugal, mesmo que suspensa, era, por si só, capaz de espoletar uma crise de violência verbal.
“És uma louca, estou farto de te aturar…, és uma puta, puuuta!”, ecoava simultaneamente com o estrondo de um pontapé numa porta, a atroada de uma outra a fechar. E aqueles olhos chispavam lume, o arqueado das sobrancelhas acentuava-se, o rosto crispava-se como possesso por um demónio!
Ódio? Assemelhava-se a um ódio desmedido ainda que injustificável. Seguramente, um ódio vindo à tona de algum desequilíbrio mental ou, havia forçosamente que o admitir, o que era ainda pior para ela, de alguma encenação que o resguardasse de qualquer deslize verbal que evidenciasse a sua vida dupla.
E como se iniciava, assim de repente tudo se finalizava. Somente, como uma intransponível barreira de aço, o silêncio entre eles perdurava através dos dias.
Para mais tarde retornar o sorriso sedutor, a macieza da voz ligeiramente rouca e sensual, o ar paternalista e protector que fazia cair na armadilha da esperança. Sempre tão cheio de atenções! Tão pronto a providenciar aqueles pequenos nadas que podem fazer a suprema felicidade de uma mulher!
Todavia, como uma descarga eléctrica duma nuvem congestionada, a voz tonitruante rugia, invariavelmente, mesmo no meio dum diálogo terno e amoroso, até logo a seguir ao acto de fazerem amor: “Estou farto de te aturar! És uma louca, puta, puuuta!”
Ela queria rugir como uma fêmea em perigo perante um predador, responder com idênticas pedradas à sua agressividade! Atirar ódio ao ódio! Conquistar algum equilíbrio emocional, dando resposta cabal que aplacasse o seu orgulho de mulher, que aquietasse o seu eu gritante de revolta. Porém, respondia-lhe com o silêncio, amordaçada pela força do ódio e da desilusão que a contagiavam no momento.
Vergastada pelas palavras ofensivas e desmedidas, olhava-o impotente na dor de não ser capaz de esgrimir verbalmente tudo o que lhe ocorria veloz pela mente como um corcel a galope, e olhava-o atordoada por não compreender o que poderia estar por detrás daquele comportamento violento e imprevisível. Para, por fim, se encolher dentro do silêncio que ficaria a reinar por entre o sofrimento de amar e odiar aquele homem!
Eu escutava estas confidências dolorosas por entre exclamações de repúdio e de espanto.
Confidenciara-me certa vez, que a culpa seria do filho. Não podia ser de outra coisa. Tresloucava-o saber que o filho de ambos era, visivelmente, mais apegado à mãe. Um dia, acabara por desabafar que deparando com os dois, a ela e ao filho, em demonstrações de afecto beijando-se repetidas vezes numa doce cumplicidade, chamara pelo filho em tom tão imperioso e gritante que a criança fugira apavorada refugiando-se debaixo da cama.
Contara-me uma outra altura que o filho, na sua presença, se aproximara um dia do pai e o abraçara imprevistamente. “Que é que tu queres?”, vociferou soltando-se do amplexo filial. A partir daí, nunca mais a criança se atrevera a abraçar o pai. Mesmo quando por ele era incentivado, em dias de alguma bonomia e acentuada boa disposição, o miúdo hesitava e logo ouvia: “Só abraças a tua mãe, é?”.

Persuadi-a a não lhe dar importância. Falei-lhe do “complexo de Édipo”. Aconselhei-a a conversar com ele. Da naturalidade dessa preferência afectiva. Ele entenderia.
Tempos depois, ouvi-a titubeante e perturbada falar do que lhe provocava sofrimento.  “Eu sei que ele nos ama, a ele principalmente…”
Fala!, supliquei sentindo que havia algo que podia ser muito grave, e que tanto lhe custava a abordar.
“Não sei se me atrevo, se devo...”, dissera então, abalada e cheia de hesitação.          Lentamente começou por confidenciar: “Dou em louca se o não faço”, e tremia, toda ela se agitava como vide sacudida pela ventania. “Tenho tanto medo de estar errada..., não me cabe na cabeça o que me vai pelo coração. E se são suspeitas infundadas? Que horror! Que horror!”, gemia encobrindo o rosto com as mãos trementes.
Imaginei imediatamente haver mais alguém na sua vida. Uma outra mulher. Um outro lar. Talvez outro filho...”Assim fosse, mil vezes assim fosse!”, gritou como se um murro de dor lhe esmagasse o peito! E contou:
“Um dia cheguei imprevistamente a casa. Sentira uma daquelas fortíssimas dores de cabeça que de vez em quando me acometiam, e o patrão, gentilmente, mandou-me embora para que repousasse.
O meu filho, com a roupa desordenada, silencioso, olhava para o pai e o seu silêncio era o gume de uma faca cortante, enquanto ele o retinha nos braços e o beijava daquela forma...Como uma louca, arranquei-lhe a criança dos braços.
Nunca nenhum de nós tocou no assunto, nesse momento de dor, de humilhação…e de abuso…, como se fosse apenas um sonho mau trazido para a luz do dia ou se tratasse tão-somente de uma visão alucinada fruto da minha mente doentia”.
“Louca, louca!”, continuou a gritar.

[Bernardete Costa é escritora Portuguesa]

sexta-feira, 3 de setembro de 2010


NÓS, OS QUE MATAMOS TIM LOPES

Affonso Romano de Sant'Anna

Você que, numa festa, vai ao banheiro cheirar uma carreirinha de pó, você matou Tim Lopes.
Você que dá festas elegantes servindo êxtase em bandejas para seus sorridentes convidados, você matou Tim Lopes.
Você que se encontra com sua turma no bar, fica ali pela calçada com um copinho na mão, mas dá suas cafungadas, porque isto faz parte da”nite”, você matou Tim Lopes.
Você, ator de teatro e televisão, que manda ver nas drogas, você matou Tim Lopes.
Você artista e intelectual que curte seu pozinho e faz elogio de um equivocado conceito de marginalidade estética, você matou Tim Lopes.
Você jornalista, que curte sua droguinha de vez em quando, você matou Tim Lopes.
Você músico, que para embalar seus shows entra no barato, você matou Tim Lopes.
Você policial, que pactua com o crime, que faz vista grossa e que recebe propinas do tráfico, você matou Tim Lopes.
Você advogado, que defende traficantes, que faz de tudo para tirá-los de trás das grades, você matou Tim Lopes.
Você juiz relapso, que neglicencia processos de traficantes, você matou Tim Lopes.
Você político demagogo e clientelista, que só se aproxima da favela para tirar votos, você matou Tim Lopes.
Vocês que fizeram essa política recessiva, que abre empregos no tráfico, vocês mataram Tim Lopes.
Enfim, matamos Tim Lopes todos nós que de maneira direta e indireta pactuamos com o crime. Porque chegamos a um tempo em que a participação indireta tornou-se tão infamante quanto a prática direta do próprio crime.
E não se trata de um exercício do famoso complexo de culpa judaico-cristão. Trata-se, isto sim, de fazer uma auto-crítica pessoal e do sistema que engendramos.
O fato é este. Estamos numa guerra. O governo por inépcia custou a reconhecer isto. Esta guerra já tem mais de 30 anos. Era como se os nazistas tivessem já invadido a França e o governo francês tivesse levado 30 anos para perceber . Há 22 anos, por exemplo, escrevi sobre esta crise. E há muito, correndo o risco de ser mal interpretado, dizia que as Forças Armadas tinham que entrar nesta guerra, antes que virássemos Colômbia. 
Numa guerra não há meio termo. Quem fornece munição ao inimigo está ajudando o outro lado a vencer. Quem dá o seu “tapinha” eventual está não só fortalecendo o traficante como ajudando a que tombem outras vítimas- os drogados. Do mesmo modo que há que traçar novas estratégias bélicas associadas a maciças ações sociais, temos também que rever nossas posturas éticas e até estéticas.
Dou-lhes um exemplo. No dia em que Tim Lopes foi assassinado, estava eu no MAM vendo uma exposição de arte contemporânea, que incluía trabalhos de Hélio Oiticica, artista da vanguarda e da marginalidade artística nos anos 60 e 70. Na parede, entre suas obras, uma bandeira amarela com a reprodução da foto do bandido Cara de Cavalo morto e, em cima, uma frase do artista: “Seja marginal, seja herói”. 
Houve, portanto, um tempo, tempo recente, quando esta guerra estava começando em que, em nossa cultura, era um charme louvar o marginal. O artista se julgava um marginal, um guerrilheiro e procurava neles pactos ideológicos, éticos e estéticos. Surgiu toda uma cultura “underground”, que se opondo, às vezes heroicamente, ao sistema, fez uma perigosa aliança com o submundo das drogas. Por contaminação, chegou-se até a criar um tipo de literatura que se gabava de ser “literatura marginal”.
Claro, havia a ditadura para justificar certas posturas. Mas a contaminação estava feita. E nos dois sentidos. Mesmo os guerrilheiros presos na Ilha Grande, nos anos 70, reconheceriam que passaram conhecimentos e táticas de guerrilha para os presos comuns. Havia ainda a visão romântica de que se poderia cooptar o marginal para a revolução. Na verdade, estava ocorrendo o contrário. Os marginais estavam nos cooptando e expandindo seu mercado, corroendo pelas drogas o sistema. Hoje, reconhece-se, são um “estado paralelo”. Elias Maluco e os comparsas que organizam bailes funks onde as letras das músicas recomendam torturar e queimar opositores, esses, para nosso constrangimento, adotando a técnica da “apropriação” tão cara à pós-modernidade, jubilosamente acenam sua bandeira no topo da miséria: “Seja marginal, seja herói”.

 Notas de Literacia:

Condenado por assassinato de Tim Lopes vende drogas em favela do Rio


Zeu cumpriu 5 anos da pena, antes de fugir ao conseguir regime semiaberto.



Condenado a 23 anos e seis meses de prisão por participação no assassinato do jornalista Tim Lopes em 2002, Elizeu Felício de Souza, o Zeu, cumpriu apenas cinco anos e 25 dias, e é considerado foragido da Justiça. Ele conseguiu o direito ao regime semiaberto, e no primeiro dia que saiu, não voltou mais. A polícia procura o bandido há três anos e não encontra. Mas o criminoso foi localizado vendendo drogas em uma favela do Rio de Janeiro.


ARCANJO ANTONINO LOPES DO NASCIMENTO, conhecido como TIM LOPES


(18/11/1950 - 2/06/2002)


Data do assassinato: desapareceu em 2 de junho de 2002. Depoimentos de traficantes presos indicam que foi morto entre as 22h e as 24h desse dia.


Local e circunstâncias do assassinato: por volta das 17h de 2 de junho, domingo, Tim Lopes foi até a favela Vila Cruzeiro, no bairro Penha, subúrbio do Rio de Janeiro, com uma microcâmera escondida numa pochete que levava na cintura, para gravar imagens de um baile funk promovido por traficantes de drogas. Ele havia recebido uma denúncia dos moradores da favela de que no baile acontecia a exploração sexual de adolescentes e a venda de drogas. Ia checar também a informação de que os traficantes construíram um parque infantil num acesso da comunidade, para dificultar a ação da polícia, e que desfilavam armados de fuzis.


Provável causa: os traficantes estranharam a presença de Tim Lopes no local. Há suspeita de que, uma vez descoberto, sua morte tenha sido decidida como vingança pela reportagem feita anteriormente, sobre a venda de drogas no morro, veiculada em agosto de 2001 pela TV Globo. Depois desta reportagem, vários traficantes foram presos e o tráfico da região teve um prejuízo econômico durante um bom tempo. Outras hipóteses são de que Tim Lopes tenha sido confundido com um policial ou um informante da polícia.




Suspeitos: segundo testemunhas, a morte de Tim Lopes foi definida pelo traficante Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco, um dos líderes do grupo criminoso Comando Vermelho, que domina o complexo do Morro do Alemão, formado por 12 favelas. As investigações indicam que participaram outros oito traficantes de sua quadrilha. Entre eles, André da Cruz Barbosa, o André Capeta, Ângelo Ferreira da Silva e Elizeu Felício de Souza, o Zeu. Antes da execução, os traficantes fizeram uma espécie de julgamento para decidir sobre a morte do jornalista. Ele foi torturado antes de morrer.


quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Sonambolibro
[julio-cortazar]
Abílio Pacheco

Toda madrugada, o vizinho chegava do trabalho com o som do carro ligado em volume muito alto. Perturbava a todos, acordava a vizinhança, às vezes queixavam-se ao síndico. De nada adiantava. Chamado à atenção,deixava o som do carro ligado até às três, às quatro, às cinco... Há mais de dois anos, ninguém reclamava mais.

A música sempre assustava o rapaz, que levantava da cama, caminhava pela casa, ia para o cômodo onde ficavam os livros e, de luz acesa, percorria os dedos pelas prateleiras, nos cortes superiores dos livros, em busca daquele

que havia deixado com o marca-página na noite anterior. Depois, continuava a narrativa interrompida, quase até a hora d’alva, quando algo (alarmes de relógio, buzinas de carro, cantos de galo) cortava-lhe o fio da história e ele

voltava ao quarto, deitava-se para em seguida despertar para um dia sem letras e livros.

Durante madrugadas assim, entraram em sua convivência Quixote, Ulisses, Gregor Samsa, Hamlet, Santiago, Lucíola, Bovary... Quem quer que o visse entre livros, sabia que dali não poderia extraí-lo. No início, todos da casa

cuidavam para que nada lhe despertasse da leitura, depois relaxaram. Nas noites em que o vizinho barulhento tornava a madrugada altissonante e a leitura inviável ou quando alguém inadvertidamente retirava o marca-página da leitura de então, o rapaz amanhecia com melancólico transtorno ontológico, um efeito colateral.

Um dia, entretanto, o quarto amanheceu vazio. A cama desalinhada confirmava que dormira as primeiras horas normalmente e depois levantara. A irmã afirmou não encontrá-lo em cômodo algum da casa, nem na biblioteca. A mãe, tranqüila, passava café: Deve estar entre os livros. E estava. Havia virado personagem de Borges ou Cortázar.
Caricatura_por_Natalia_Menezes.       Retornar...
Abilio Pacheco, é escritor, com diversas obras e ensaios publicados-Belém

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O que querem as mulheres?

Freud fez uma famosa indagação, que até hoje está lhe custando caro. Disse que depois de ter estudado tudo que podia sobre a mente humana, havia uma pergunta que não conseguia responder:-”Afinal, o que querem as mulheres?”.

Não só as feministas, mas até os homens sensatos acharam que o companheiro estava exagerando. E recentemente duas variantes de resposta a Freud surgiram. Uma foi o livro da americana Erica Jong “O que querem as mulheres”(Ed.Record) e agora mais recentemente esse filme com o Mel Gibson “O que as mulheres pensam”.

Mas existe uma outra resposta que me parece a melhor para a questão plantada por Freud.Trata-se de uma lenda que, a rigor, antecede ao lendário Freud, e fico pensando que se Freud a conhecesse talvez se poupasse de se expor daquela maneira.

Diz a estória, que o Artur - aquele da Távola Redonda- quando era jovem, certo dia cometeu uma infração: foi caçar na floresta de outro rei e acabou sendo preso e levado `a presença do outro monarca para ser punido

Deveria ser condenado à morte. No entanto, o rei que o deteve resolveu dar-lhe uma chance. Pouparia sua vida se conseguisse, dentro de um ano responder `a pergunta pré pós freudiana:- “O que querem as mulheres?”.

Agradecido pela deferência, Artur saiu `a cata da resposta. Perguntava daqui, perguntava dali, mas nem os religiosos, nem os médicos, nem os inveterados conquistadores de corações femininos conseguiam lhe responder com clareza. Estava já o prazo se exaurindo, quando lhe informaram que havia uma bruxa que sabia a resposta. Foi procurá-la. Era uma bruxa como têm que ser as bruxas nas lendas: velha, desdentada, falando impropérios. Artur, no entanto, fez-lhe a pergunta. Ela lhe disse que lhe daria a resposta caso ela pudesse se casar com o cavaleiro Gawain, que era o mais belo e valoroso dos companheiros de Artur. Este, perplexo, foi ao amigo e lhe expôs a patética situação. Amigo que é amigo, sobretudo nas lendas, não vacila. Faria tudo para salvar o companheiro de peripécias, até mesmo casar com uma bruxa.

Acertada a condição, então, a bruxa respondeu à pergunta fatal, dizendo:- _"_S_a_b_e_ _o_ _q_u_e_ _r_e_a_l_m_e_n_t_e_ _q_u_e_r_ _a_ _m_u_l_h_e_r_?_ _E_l_a_ _q_u_e_r_ _s_e_r_ _s_e_n_h_o_r_a_ _d_e_ _s_u_a_ _p_r_ó_p_r_i_a_ _v_i_d_a_!_"_. Artur e os demais, inclusive o rei que o havia condenado, ficaram todos atônitos, se dizendo, como é que nós não pensamos nisto antes, a resposta é simples e genial. E Artur foi então perdoado.

Mas a estória continua, o casamento tinha que se realizar, pois Gawain não era de deixar mesmo uma bruxa na mão. No dia das bodas, foi um vexame. A bruxa emporcalhava a mesa, ria com seus dentes faltosos, enfim, um espavento. Mas a festa foi continuando, foi- se aproximando a hora da chamada união carnal no branco leito nupcial. Mas aí, aconteceu algo surpreendente. Estava Gawain já preparado para o cadafalso erótico, quando surgiu-lhe uma deslumbrante e virginal donzela `a sua frente. E antes que sua perpelexidade continuasse a donzela disse que ela era a bruxa, ou melhor, uma das faces da bruxa. Estava mostrando a sua outra face, porque ele a tinha aceito como era; que de dia era a bruxa façonhenta, de noite aquela ninfa loira. Mas antes que consumassem a chamada união carnal, Gawain poderia decidir com qual das duas queria viver o resto da vida. Ou a feia que comprometeria sua imagem pública ou a perfeita, que ele, só ele, conhecia `a noite.

Gawain então disse que deixava à escolha dela, o que ela queria realmente ser e parecer. A noiva neste momento metamorfoseou-se para sempre na bela mulher do cavaleiro que o acompanharia noite e dia, pois ele havia respeitado nela o que ela realmente era.

Esta estória me foi dada como estando no livro “Feminilidade perdida e reconquistada” de Robert A. Johnson, livro que não encontrei. Perguntei a Antônio Furtado, que é o maior especialista brasileiro em Rei Artur, e ele disse que conhecia essa lenda.

Não tem importância. É a melhor resposta que encontrei `a inquietação de Freud. Mas agora gostaria de cutucar a onça com vara curta e indagar pelo outro lado da questão:-Afinal, o que querem os homens?


Affonso Romano de Sant'Anna
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sábado, 31 de julho de 2010

Amor, Comida e Sexo 
[Casa_dei_Casti_Amanti_-_Banquet]

Por Helena Vasconcelos



[NOTAS SOBRE COMIDA E CIVILIZAÇÃO]

Em tempo de férias, apetece-nos pensar em comida, em sexo e , porque não, em Amor. Conheça ou recorde um pouco da história dos alimentos e do seu impacto na evolução dos costumes, cultura e hábitos civilizacionais.


OS ALIMENTOS

Diz-se que Deus criou os alimentos e o Diabo os condimentos o que, à partida, estabelece uma diferença essencial na forma como encaramos o conceito de comida: por um lado como manutenção da vida e, por outro, como prazer. A alimentação acompanha intimamente as transformações sociais, morais e políticas, está ligada a uma das nossas vivências mais importantes, constitui-se como um roteiro de esperanças, medos e desejos, pode até tornar-se numa verdadeira obsessão, como o amor e o ódio. Sofremos as agruras da vida, a opressão de tiranos, o desdém dos mais fortes, as dores do amor e outros infortúnios e basta, por vezes, uma boa refeição para aliviar o corpo e da alma. O inventário da forma e conteúdo do que se come, onde, como e quando, sem esquecer o sujeito, ou seja, quem come o quê, constitui um estimulante e excitante exercício. Segundo Werner Sombart “ o luxo ligado à comida nasce na Itália durante os séculos XV e XVI, quando se assiste à formação da “arte culinária”, juntamente com as outras artes. Antes só existia o “devorar”. Agora, refina-se esse prazer e substitui-se a quantidade pela qualidade. Esse luxo passa para França em finais do século XVI.”
Nos nossos dias, nas sociedades ocidentais, vivemos uma época de abundância e a alimentação democratizou-se sem deixar de acompanhar as constantes alterações económicas e culturais. Desdenhando dos ciclos da natureza, toda a casta de alimentos está à disposição das pessoas durante todo o ano e há quem se incomode com a falta de um produto específico sem o qual se viveu durante séculos e milénios e que, subitamente, se torna imprescindível. Por contraste, existem ainda vastas áreas no planeta em que se morre de fome, em que a escassez de alimentos dizima mais populações do que as doenças e/ou a guerra. A mudança do papel da mulher na sociedade, o incremento das descobertas científicas que vieram trazer informações suplementares no campo da nutrição e a subida do nível de vida da classe média, são alguns dos factores que têm contribuído para criar novos hábitos alimentares. É possível traçar mapas e gráficos que reflectem as oscilações de gosto e aplicá-los a estudos de mercado em áreas tão diversas como o vestuário ou os automóveis, a saúde e a política. Doris Grant em “Dear Housewives” já dizia, em 1954, que “…nós (as mulheres) temos o poder, sozinhas, de fomentar ou diminuir a saúde nas nossas famílias através da forma como as alimentamos. Uma pessoa saudável não abriga maus sentimentos ou maus temperamentos.”
Assim, é comum os estudiosos estabelecerem uma ligação forte entre o papel desempenhado pela mulher no lar e na alimentação, com especial ressalva para o açúcar que foi pela primeira vez citado na Europa no século XV e introduzido na corte francesa por Catarina de Médicis que ajudou a difundir a moda dos licores. Com a intensificação do luxo baseado na especificidade de certos alimentos – açúcar, café, chá, cacau – todo o sistema económico foi alterado e contribuiu para o alargamento do capitalismo. Para Roland Barthes a “alimentação em Sade é funcional e sistemática...um signo de luxo, não porque o luxo seja voluptuoso em si mesmo mas porque o dinheiro que lhe está ligado assegura a divisão entre ricos e pobres, senhores e escravos”. Quanto a Claude Lévi-Strauss chegou a comparar os alimentos a uma gramática, uma vez que “…a complexidade de pensamentos e emoções que suscitam, constituem uma sintaxe.”

GEO - POLÍTICA DOS ALIMENTOS

Na Europa, os irlandeses conheceram a fome ao longo da sua história bem como os habitantes dos países ricos de agora como a Suécia, a Dinamarca e a Noruega. Yeats conta que, no século XII, uma condessa irlandesa vendeu a alma ao Diabo para salvar o seu País da fome. Os romanos, que herdaram dos etruscos o gosto pela cozinha sumptuosa, expandiram-se ao ocuparem países produtores de cereais como o Egipto, e avançaram para Leste numa procura de condimentos que inspiraram sem duvida os descobrimentos portugueses na sua busca de especiarias e de novos alimentos. Um dos mais celebres banquetes romanos é o de Trimalcião, que Petronius descreve em Satyricon e que ilustra bem a decadência de uma sociedade em que o excesso liga indiscutivelmente a alimentação ao sexo.
A comida ou a falta dela, aguçam o engenho: Benjamim Thompson, Conde de Rumford (1753-1814), americano de nascimento, inventou uma sopa “portátil”, um cubo feito de caldo de vitela solidificado com pedaços de carne de porco e outros ingredientes com a intenção de melhorar as condições dos pobres, o 4º Conde de Sandwich (1718-1792) engendrou o manjar com o mesmo nome para não perder tempo à mesa de jogo, onde passou a maior parte da sua vida, e Napoleão foi o pioneiro da fast-food porque se recusava a perder mais do que dez minutos a comer.

OS GASTRÓNOMOS

É impossível falar-se deste tema sem referir o nome de Jean-Anthelme Brillat-Savarin - um bolo (Savarin) com rum, natas e fruta fresca, e um queijo (Brillat-Savarin) têm o seu nome - filósofo, político, escritor, gastrónomo, deputado e presidente da Câmara de Belley em 1793, cujo aforismo mais famoso e que não perdeu a actualidade, ganhando até em dimensão política, é: “ Diz-me o que comes e dir-te-ei quem és”. Durante a Revolução Francesa refugiou-se na Suíça e mais tarde nos Estados Unidos, onde chegou a tocar violino numa orquestra em Nova Iorque, aproveitando para introduzir os seus amigos americanos na prática hedonista de comer gelados e fondue e levando a cabo testes complicados nos quais era determinada a personalidade e importância em termos de inteligência e sensibilidade dos seus comensais, através dos comentários que faziam aos alimentos por ele preparados. A sua obra “ Fisiologia do Gosto: ou, Meditações Acerca da Gastronomia Transcendental”, um compêndio da arte da mesa, publicado em 1825, tem conhecido inúmeras edições e traduções, sem perder uma pitada de humor e de sabedoria. Está repleto de conceitos que fazem as delícias das mentes mais requintadas, tais como: “ O destino das nações depende da forma como são alimentadas”; “…Os limites do prazer ainda não foram encontrados nem determinados” ou “…A mesa é o ponto de encontro de todas as expressões da sociabilidade moderna: o amor, a amizade, os negócios, as especulações, o poder, as solicitações, o proteccionismo, a ambição e a intriga. “ Para Brillat-Savarin, todas as acções do ser humano têm dois propósitos: a preservação do indivíduo e a continuação das espécies. Nesse sentido, o homem foi abençoado com o dom da sensação directa e imediata de satisfazer a sua necessidade de comer aliado à “… capacidade extra de poder determinar e ter prazer com o que mais lhe agrada em termos de gosto.” Nos nossos dias, Diane Ackerman, em “A Natural History of the Senses” faz notar que o paladar é, dos cinco sentidos, o que melhor se pode desfrutar social e publicamente. As comemorações, sejam elas familiares – aniversários, casamentos, baptizados – amorosas ou de outra índole celebram-se com repastos, banquetes e libações e os sociólogos e psicólogos há muito que estudam a influência da alimentação na formação do indivíduo. É preciso não esquecer, nos tempos que correm, que o hábito de olhar para a televisão enquanto se come prejudica a comunicação entre as pessoas, uma vez que a mesa doméstica tem um fim educativo, deve ser um lugar onde se celebra a união e não as desavenças, o entendimento e não a repressão.
Mestres da cozinha como Marcus Gavius Apicius, autor do primeiro tratado de cozinha conhecido, “De Re Coquinaria” (séc. I d.C) o criado da corte de Luis XIV, Nicolas de Bonnefons (séc. XVII) , Antonin Carême (Séc XVIII-XIX ) e o grande Leonardo da Vinci (séc. XV –XVI) que, como se sabe, para além de pintor, escultor, arquitecto e inventor era também mestre de banquetes nas cozinhas de Ludovico Sforza, reforçaram a ideia da convivência e da celebração do prazer da mesa.
Na Literatura Portuguesa, Ramalho Ortigão, que era um fino gourmet, defendeu as virtudes da cozinha portuguesa sem esquecer a sua doçaria, (note-se o termo “fazer marmelada” e as suas implicações) e a obra de Eça de Queirós está recheada de referências à comida, à bebida e aos seus prazeres e inconvenientes. O Padre Amaro toma conta da sua diocese depois de Frade Hércules, o “Boa-Constrictor” ter “rebentado” após uma ceia e o avô de Jacinto morre depois de uma indigestão de lampreia enquanto que o neto, ao voltar a Tormes, à mesa de Zé Fernandes, se delicia com as sopas, as favas guisadas e os frangos corados, recuperando assim o gosto pela vida.
Convém também referir o famoso “Tratado Completo de Cozinha e Copa” de Carlos Bandeira de Melo (1848-1924) em que se percebe, sem sombra de duvida, que o autor leu “A Cidade e as Serras” de Eça de Queirós, e que defende as ideias de Jacinto, quanto ao progresso e ao conforto.

ALIMENTOS E EROTISMO

As refeições também podem ter uma conotação fortemente erótica. Isabel Allende, por exemplo, elege o desinteresse à mesa, a par da televisão, do mau hálito, dos banhos gelados, da visão de um homem nu só com peúgas e de uma mulher com rolos na cabeça, como um dos maiores anti-afrodisíacos conhecidos. Já na Grécia Antiga, a gula e a volúpia estavam relacionadas. Sócrates dizia que os maus vivem para comer e os bons comem para viver. Quanto a São Jerónimo apontava a gula como incitação à luxúria e o jejum sempre foi considerado um acto de purificação.
No Império Romano, a comida tinha uma importância enorme, aguçada pelo fim do poderio de Roma. O psiquiatra e investigador Willy Pasini faz uma distinção interessante entre três culturas. Enquanto os patrícios de Roma se empanturravam de comida, os idealistas cristãos pregavam a contenção e o rigor e os bárbaros concentravam a sua dieta quase exclusivamente na carne assada no espeto, própria dos nómadas. Assim, a cultura romana estabelecia a relação entre o sexo e a comida numa base hedonista, centrada no prazer, a dos cristãos numa pecaminosa, criando os fundamentos de uma condenação moral do excesso, (não é possível esquecer como a origem do pecado é representada pela dentada que Eva dá numa maçã), e a dos bárbaros numa virilidade ligada à acção e à sobrevivência.
Catarina II da Rússia conseguiu engravidar e dar um herdeiro a Pedro, o Grande depois de ter comido caviar, o nascimento de Henrique IV ficou a dever-se a um paté de trufas e o da filha de Napoleão Bonaparte a uma pintada com recheio também de trufas, regada a champanhe. Madame de Pompadour comia moleja dada pelo seu real amante como remédio contra a frigidez e Cleópatra seduzia os apaixonados com lautos festins em que ameaça de envenenamento era também uma constante. A literatura, a pintura e, no geral, toda a cultura ocidental estão recheadas de referências à comida. Casanova alimentava a sua volúpia com uma dieta à base de esturjão, carne de caça, trufas e vinho da Saxónia, Marcel Proust em “Do Lado de Swann” consolava a sua melancolia com a recordação das “madalenas” que a mãe do pequeno Marcel fazia em Combray, as personagens de “O Leopardo” de di Lampedusa são apresentadas num banquete, o “Decameron” de Boccacio explicita bem a forma como os religiosos demonstram os seus interesses eróticos através da comida e o Marquês de Sade preferia a carne de pombo embora, para ele, a alimentação fosse, como já foi dito, “funcional e sistemática”. Quanto a Lutero, apesar do seu ascetismo, perdia-se por banquetes e Jean-Jacques Rousseau demonstrava a sua postura racionalista, privilegiando os repastos à base de vegetais.
A visão da comida é bastante mais poética nas civilizações orientais, onde as refeições estão ligadas ao despertar dos sentidos e a prazeres subsequentes, uma experiência sofisticada e mística que abre um número infinito de possibilidades. Jean – Bernard Naudin e Odile Godard em “Sabores das Mil e Uma Noites” ( Ed. Difusão Cultural, Lisboa) aproveitam as histórias da prolixa Xerazade para falarem do luxo, “essa despesa que vai para além do necessário”, aliada à noção de cortesã, a mulher que corteja e entretém o seu senhor, sem esquecer a utilização dos alimentos para levar a cabo a sedução.
Mas a comida e o sexo estiveram sempre intimamente ligados e os rituais da alimentação abrangem um grande número de tabus, dos quais o mais controverso é, sem dúvida, o do canibalismo. (Gargântua que, como se sabe, possuía um apetite ilimitado, comeu de uma assentada seis peregrinos numa salada). Há quem defenda a teoria de que o canibalismo possui uma implicação sexual e erótica, uma vez que representa a total fusão numa outra pessoa. Poderá estar relacionado tanto com a ideia do terror da solidão após o orgasmo, como com rituais mágicos e religiosos, como a crença na transferência de poderes. O célebre navegador inglês James Cook foi devorado pelos nativos, em 1779, na Polinésia, como sinal de respeito pelos dons extraordinários que lhe eram atribuídos e o Padre Jean de Brébeuf, depois de mostrar uma bravura extraordinária perante as torturas dos índios Iroqueses, em 1649, em Ontário, foi devorado pelos mesmos índios que assim esperavam ganhar a sua força. Mais recentemente, Idi Amin dedicava-se ao canibalismo com a mesma intenção de subtrair as qualidades de outras pessoas em proveito próprio.

Apesar de presentemente estarmos a viver, no mundo ocidental, uma época de abundância e, como tal, haver a tendência para se votar os gordos ao ostracismo, (a fórmula “gordura é formosura” parece ter passado à história), ainda restam alguns resquícios de que a gordura está ligada à prosperidade, à sabedoria e à bonomia. Ainda segundo Willy Pasini, autor de “A Alimentação e o Amor”, os políticos, dirigentes e personagens fortes do mundo da finança que se apresentam como bem nutridos, suscitam mais simpatia do que os magros. Uma das figuras obesas que exerce um permanente fascínio é sem dúvida a imagem de Buda. Mário Soares e Helmut Kholn que aliás, recentemente, publicou um livro de cozinha, são disso exemplos. A pressão social instiga-nos a comer muito e sempre, enquanto aumentam as preocupações em relação a uma dieta saudável e equilibrada. Também nos pressiona no sentido de manter a elegância e a boa disposição. Segundo Margaret Visser (“Sins of the Flesh” Ed. Granta) o vegetarianismo seria uma resposta a este dilema, tanto mais que, “Nas sociedades mais ricas atingiu-se um tal estado de saciedade e de exaustão na escolha que desejamos ter algo que possamos rejeitar.” Neste caso trata-se da carne uma vez que levanta uma questão do foro ético, a da crueldade para com os animais a qual, ainda segundo Visser “faz despertar a nossa culpa, enraizada na chamada mentalidade de “campo-de-concentração”, um lugar onde a crueldade acontece em segredo, para que possamos adormecer as nossas consciências. Estas ideias são apoiadas pelo escritor sul-africano J.M. Coetze, um vegetariano convicto que recorda que o respeito pela vida pode não passar de uma espécie de “moda” como aconteceu em 1920 quando Gandhi esteve em Inglaterra e os seus hábitos de frugalidade se tornaram um “must” a que aderiram figuras como Bernard Shaw, Edward Carpenter, os Teosofistas e os Fabians. Em oposição a Coetze e Visser, pode citar-se o escritor Sean French que escreveu o seguinte: “ Gosto de sangue frito. Gosto de partes de animais com gostos e texturas improváveis. Da acidez da urina nos rins que atraiu Leopold Bloom. Da consistência de borracha das tripas que podem saber a uma botija de água quente mal passada. Da alvura macia dos miolos de vitela... O problema é que nos ensinaram que a comida deve ser fresca e completa, exactamente como nos ensinaram que o sexo deveria ser um prazer racional e nada complicado. Evidentemente que “algum” sexo deveria ser assim mas, apesar de uma sardinha de cinco dias não ter nenhuma graça, muitas vezes o prazer da comida está relacionado com o processo da decomposição”. Um dos exemplos mais comuns é o do queijo que já é uma decomposição do leite e de certas peças de caça que só estão boas quando começam a estar cobertas de vermes.
Uma das gurus da alimentação nos Estados Unidos, Susan Power, tem tentado libertar os americanos do que ela chama de disparates espartanos, fazendo apelos ao prazer da boa mesa e classificando a anorexia não como um sinal de elegância mas como uma doença. De um momento para o outro as dietas mediterrâneas, em que o azeite e outras gorduras naturais ocupam lugar de destaque, começaram a ser louvadas e glorificadas. O facto de o vinho, quando bebido com moderação, ser considerado benéfico para a saúde tem sido amplamente divulgado. Nunca é demais referir o mito dionisíaco que liga o seu consumo à capacidade de ultrapassar todos os limites, incluindo o sexual. A embriaguez está também ligada à ideia de iniciação cósmica e erótica. Dioniso, o deus filho de Zeus, contribui para a divulgação da vinha na Europa e introduziu esta bebida nos “bacanais”. A sua ligação com o sexo e com os alimentos contribuía para canalizar energias, libertando as pessoas de convenções e fazendo-as ultrapassar os seus próprios limites. Ainda segundo Passini “…é no âmbito religioso que os alimentos começam por adquirir conotações eróticas, primeiro com as Bacantes, depois com os Astecas e com os Cristãos. A comunhão, ou união com a divindade, passa pela ingestão da sua carne e do seu sangue. “Quanto a Afonso XII, recompunha-se das canseiras amorosas com sopas de vinho e o satirista e retórico romano Apuleio escreveu em “O Asno de Ouro” que “… o vinho serve para vencer a cobardia do pudor e ganhar forças para o prazer”. Nunca é demais lembrar Shakespeare, principalmente o seu “Falstaff”. Basta ler a peça “Henrique IV” para se saber como se alimentavam os ingleses, naquela época. À mesa da pousada de Eastcheap, Falstaff delicia-se, comendo lagosta com espessa mostarda de Tewkesbury, ovos com manteiga e rábanos tenros de Chersey, leitõezinhos assados de S. Bartolomeu, congro de Gravesend com ervilhas de Eton, cebola vermelha de Staine e açafrão de Espanha, capões de Upminster e Harrow e pastelão de veado de Derby e Darmoor, tudo bem regado com vinho das Canárias. Tal como Samuel Johnson e Mr Pickwick, Falstaff encontra a felicidade na taberna, onde se liberta de preocupações. Pelo contrário, uma antiga lenda talmúdica, para mostrar que a desinibição deve ter alguns limites, conta-nos que Noé plantou a primeira vinha e regou-a três vezes, com sangue de cordeiro, de leão e de porco. Assim, quem bebe moderadamente fica alegre e vivaz como um cordeiro, quem enche mais o copo fica forte como o leão e quem exagera acaba a rebolar-se na lama como um porco. Quanto à relação da mulher com a bebida sempre foi ambígua e por vezes desagradável. Nas antigas sociedades grega e romana, a figura da bêbada é uma das mais ridicularizadas à excepção de Ovídio que, na “Arte de Amar”, aconselha a mulher a beber com moderação para aumentar os seus dotes de sedutora. Os exemplos de mulheres que bebiam por prazer não são muitos. Fala-se em Cleópatra, em Madame de Mailly, na Pompadour, ambas favoritas de Luis XV, e na condessa de Castiglione. Neste capítulo e até aos nossos dias, as mulheres têm estado em posição de desvantagem. É preciso dizer-se que o vinho é ainda considerado como um dos mais populares afrodisíacos, capaz de soltar as línguas, as mentes e os corpos, tornando as pessoas desinibidas e verdadeiras (“in vino veritas”).
Mas, no capítulo dos afrodisíacos, a loucura parece apossar-se dos mais tímidos e recatados. São poucos os que resistem à tentação de experimentarem filtros do amor, mezinhas que aumentam a potência sexual ou tisanas que inebriam os sentidos. Como se sabe o termo provém das “afrodisias”, orgias sagradas em honra de Afrodite, a deusa do amor que emergiu nua das ondas. Em “Esconjuros, Feitiços e Poções Eróticas”, Emma Cohen fala das práticas de sedução através de substâncias que tanto podem ser pedras moídas como sementes, óleos e órgãos de animais e lembra que grandes nomes da literatura, da ciência e da filosofia como Hipócrates, Cornelius Agrippa, Mircea Eliade e até Isaac Asimov se dedicaram a este assunto. A lista das plantas miraculosas inclui a urtiga, o açafrão, o pistácio, o alho-francês, a aboborinha e as alcachofras, a das especiarias, o alho, a canela e o cravinho. Quanto aos alimentos de forma fálica como os alhos-porros, as bananas, os espargos, os pepinos e as enguias, bem como os que possuem uma simbologia feminina como as ostras, os figos e o caviar (por serem ovas) são de efeito garantido. Mas o mais frequentemente citado é sem duvida a trufa que, na sua composição inclui uma hormona, a androsterona, que o varrasco possui em grande quantidade. É essa a razão pela qual são utilizadas porcas na sua procura. A androsterona agrada também aos humanos. Daí que Brillat-Savarin afirmasse que, “…a trufa derrete as mulheres e cria uma maior volúpia nos homens.” Até Alfredo Saramago que não acredita na cozinha afrodisíaca, acaba por dizer que “as trufas cozidas em cinza facilitam os jogos amorosos.” Quanto ao Marquês de Sade punha cantiridina nos doces que dava às prostitutas e um tal Amedée Doppet aconselhava os homens a untarem o pénis com uma pasta feita de mel, óleo de noz-moscada, pimenta preta e musgo. Há quem aconselhe pomba com vinho tinto, leite com pinhões, certos cogumelos, o chocolate, (defendido pelos jesuítas, que o comercializavam, e cujo consumo, mesmo durante o jejum da Quaresma foi autorizado pelo Papa Pio V) e até a açorda à alentejana, considerada afrodisíaca talvez pela inclusão de ervas aromáticas como os coentros ou o poejo. Quanto à panóplia de órgãos de animais alguns deles em via de extinção, nem vale a pena referir e espera-se que caia em completo desuso. A terrível Messalina, de desagradável memória, usava a vulva de ovelha e os úberes de vaca como excitantes infalíveis.
Cabe aqui fazer uma menção especial a um livro “Afrodite, Histórias, Receitas e Outros Afrodisíacos” de Isabel Allende, “divagações eróticas” que ela dedica aos “…amantes brincalhões e – porque não? – também aos homens assustados e às mulheres melancólicas.” Allende, agora com cinquenta anos, (o que ela chama de “crepúsculo”), sente que, com essa idade, em vez de desejar abrandar o ritmo tem, pelo contrário o desejo de “pecar e reflectir nas fraquezas da carne e na sua relação entre a comida e o erotismo”, com a intenção expressa de continuar a desfrutar de ambos, “enquanto as forças e o bom humor lhe permitirem”. Sempre com este pretexto em mente, delicia o leitor, ao longo de mais de trezentas páginas com aforismos, citações, receitas, contos sobre ela própria e sobre outros e histórias dentro da história. Explica, por exemplo, a diferença entre a pornografia, “um método sem imaginação” e o erotismo, “uma inspiração sem método.” Ou seja, “erótico é quando se usa uma pena, pornográfico quando se usa a galinha.” Com capítulos inteiros dedicados aos cinco sentidos, a arquétipos como o sedutor e o gigolô, a lugares como o harém, é coadjuvada nesta aventura por um amigo, Robert Skekter, o autor das fantásticas e belíssimas ilustrações e pela própria mãe, Panchita Llona, a feiticeira autora das receitas incluídas no livro. Em sua opinião, um jantar especial deve ser pensado como “…um crescendo, que começa com as notas suaves da sopa, passa pelos harpejos delicados da entrada, culmina na fanfarrice do prato principal, ao qual se seguem por fim os suaves acordes da sobremesa. O processo é comparável ao de fazer amor com arte, começando com as insinuações, saboreando os jogos eróticos, chegando ao clímax com o estrondo habitual e, por fim, mergulhando num afável e merecido repouso. “Allende refere ainda, comovidamente, o longo tempo de luto pela sua filha Paula e de como foi capaz de sobreviver e de retomar o gosto pela vida, através do prazer da mesa.

AS RECEITAS

Ao longo dos tempos, as receitas de cozinha têm sido, na sua maioria, transmitidas oralmente de uma geração para outra, numa corrente ininterrupta de segredos e confissões, por vezes ciciadas em leitos de morte. Mas a literatura da alimentação teve um incremento extraordinário depois da 1ª Grande Guerra, quando começaram a aparecer livros de cozinha e revistas femininas com esse tipo de informação já que, anteriormente, obras como “Household Management” de Mrs Beeton (1861) ou “Modern Cookery” de Eliza Acton (1845) se concentravam quase exclusivamente na organização da casa e do pessoal que aí trabalhava. Quando a mulher passou a ter de cozinhar ela própria, para a família e para os convidados, tudo mudou. Segundo Ambrose Heath, autor de mais de setenta livros de cozinha, preparar uma refeição pode constituir um projecto de sedução, de ambição e de exibicionismo, pode servir para conseguir um aumento no emprego, para exibir um estatuto social, ou ainda para delimitar territórios e levantar barreiras ou ainda, pelo contrário, para gerar concórdia e dar a conhecer outros gostos e paladares, para servir de motor de aculturação. As cidades dos nossos dias estão cheias de restaurantes com comida das mais variadas procedências. A chamada “aldeia global” também inclui o estômago. Uma pioneira neste capitulo foi Elizabeth David que, nos anos cinquenta, ao introduzir receitas de cariz mediterrâneo, contribuiu para uma alteração significativa nos hábitos alimentares dos ingleses que, como se sabe, são tendencialmente isolacionistas e nacionalistas nesta e noutras áreas. Quanto a escritoras como Peg Bracken e Shirley Conran nas suas obras, respectivamente, “I Hate to Cook Book” e “Superwoman”, publicados nos anos setenta, foram o espelho dos movimentos feministas que defendiam acaloradamente o abandono da cozinha por parte da mulher. Nos anos oitenta, pelo contrário, desenvolveu-se a moda dos livros de gastronomia porno. Hoje em dia os livros de cozinha atingiram graus de sofisticação tão elevados que é quase impossível abrir uma dessas obras que não esteja cheia de referências culturais, plena de anedotas, histórias, contos e tradições, acompanhadas de estudos científicos, religiosos, semânticos e antropológicos ou ainda, de considerações filosóficas. A comida parece ocupar agora um lugar na nossa civilização que nunca deveria ter abandonado. É através da comida que temos a noção do nosso poder sobre a vida e sobre a morte e é também através da comida que estabelecemos uma convivência e uma relação com os outros seres vivos.

OBRAS CONSULTADAS PUBLICADAS EM PORTUGAL:

“Comida Inteligente. A Dietética do Cérebro” de Jean-Marie Bourre, Ed. Gradiva, 1993
“Esconjuros, Feitiços e Poções Eróticas” de Emma Cohen, Ed. Temas da Actualidade, 1993
“Sade, Fourier e Loyola”, Roland Barthes, Edições 70, Lisboa.
“A Carne e o Diabo” de Jean-Didier Vincent, Fórum da Ciência, Ed. Europa-América, 1997
“A Alimentação e o Amor” de Willy Pasini, Ed. Difusão Cultural, 1994
“Amor Luxo e Capitalismo”, Bertrand Editora, Lisboa, 1990.
“Para uma História da Alimentação no Alentejo” de Alfredo Saramago, Ed. Assírio & Alvim, 1997
“Afrodite. Histórias, Receitas e Outros Afrodisíacos” de Isabel Allende, Ed. Difel, 1997
“Receitas Afrodisíacas & Desenhos Eróticos” de Afonso Praça e Francisco Simões, Editorial Notícias, 1997
[*Helena Vasconcelos nasceu em Lisboa, Portugal. Foi para a Índia com quatro anos e, desde então, nunca mais parou de viajar. Formada pela Faculdade de Letras; em Filologia Germânica pela Universidade Clássica Lisboa e em História de Arte na Escola Arco, Lisboa, tem como ocupações principais escrever, ler e viajar. É atualmente, e desde o primeiro número, colaboradora permanente da revista ELLE portuguesa. Colabora com o "Jornal Público" desde a sua fundação – suplemento cultural Y - tendo também trabalhado no jornal "O Independente". Promove ações de Formação na área de apoio e divulgação à Leitura em Bibliotecas Municipais, orientando Comunidades de Leitores em Bibliotecas e, desde há cinco anos, na Culturgest, em Lisboa. É promotora e dinamizadora de “Os Clássicos na Gulbenkian”, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; organizou os ciclos de conferências da Feira do Livro de Lisboa de 2004 e de 2005 (com Paula Moura Pinheiro). Escreveu sobre Arte em vários jornais, catálogos e revistas da especialidade, dos quais se destacam Neue Kunst in Europa (Alemanha), Juliet (Itália). Publicou um livro de contos em 1988 “Não Há Horas para Nada” (Ed. Relógio D’Água) que recebeu o Prêmio Revelação do Centro Nacional de Cultura. Publicou “Mário Eloy. O Pintor do Desassossego”, Ed. Caminho. Contribuiu com “short stories” para várias revistas portuguesas e estrangeiras. Criou e dirige a revista on-line "Storm-Magazine. O lugar da cultura" - www.storm-magazine.com.]