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sábado, 31 de julho de 2010

Amor, Comida e Sexo 
[Casa_dei_Casti_Amanti_-_Banquet]

Por Helena Vasconcelos



[NOTAS SOBRE COMIDA E CIVILIZAÇÃO]

Em tempo de férias, apetece-nos pensar em comida, em sexo e , porque não, em Amor. Conheça ou recorde um pouco da história dos alimentos e do seu impacto na evolução dos costumes, cultura e hábitos civilizacionais.


OS ALIMENTOS

Diz-se que Deus criou os alimentos e o Diabo os condimentos o que, à partida, estabelece uma diferença essencial na forma como encaramos o conceito de comida: por um lado como manutenção da vida e, por outro, como prazer. A alimentação acompanha intimamente as transformações sociais, morais e políticas, está ligada a uma das nossas vivências mais importantes, constitui-se como um roteiro de esperanças, medos e desejos, pode até tornar-se numa verdadeira obsessão, como o amor e o ódio. Sofremos as agruras da vida, a opressão de tiranos, o desdém dos mais fortes, as dores do amor e outros infortúnios e basta, por vezes, uma boa refeição para aliviar o corpo e da alma. O inventário da forma e conteúdo do que se come, onde, como e quando, sem esquecer o sujeito, ou seja, quem come o quê, constitui um estimulante e excitante exercício. Segundo Werner Sombart “ o luxo ligado à comida nasce na Itália durante os séculos XV e XVI, quando se assiste à formação da “arte culinária”, juntamente com as outras artes. Antes só existia o “devorar”. Agora, refina-se esse prazer e substitui-se a quantidade pela qualidade. Esse luxo passa para França em finais do século XVI.”
Nos nossos dias, nas sociedades ocidentais, vivemos uma época de abundância e a alimentação democratizou-se sem deixar de acompanhar as constantes alterações económicas e culturais. Desdenhando dos ciclos da natureza, toda a casta de alimentos está à disposição das pessoas durante todo o ano e há quem se incomode com a falta de um produto específico sem o qual se viveu durante séculos e milénios e que, subitamente, se torna imprescindível. Por contraste, existem ainda vastas áreas no planeta em que se morre de fome, em que a escassez de alimentos dizima mais populações do que as doenças e/ou a guerra. A mudança do papel da mulher na sociedade, o incremento das descobertas científicas que vieram trazer informações suplementares no campo da nutrição e a subida do nível de vida da classe média, são alguns dos factores que têm contribuído para criar novos hábitos alimentares. É possível traçar mapas e gráficos que reflectem as oscilações de gosto e aplicá-los a estudos de mercado em áreas tão diversas como o vestuário ou os automóveis, a saúde e a política. Doris Grant em “Dear Housewives” já dizia, em 1954, que “…nós (as mulheres) temos o poder, sozinhas, de fomentar ou diminuir a saúde nas nossas famílias através da forma como as alimentamos. Uma pessoa saudável não abriga maus sentimentos ou maus temperamentos.”
Assim, é comum os estudiosos estabelecerem uma ligação forte entre o papel desempenhado pela mulher no lar e na alimentação, com especial ressalva para o açúcar que foi pela primeira vez citado na Europa no século XV e introduzido na corte francesa por Catarina de Médicis que ajudou a difundir a moda dos licores. Com a intensificação do luxo baseado na especificidade de certos alimentos – açúcar, café, chá, cacau – todo o sistema económico foi alterado e contribuiu para o alargamento do capitalismo. Para Roland Barthes a “alimentação em Sade é funcional e sistemática...um signo de luxo, não porque o luxo seja voluptuoso em si mesmo mas porque o dinheiro que lhe está ligado assegura a divisão entre ricos e pobres, senhores e escravos”. Quanto a Claude Lévi-Strauss chegou a comparar os alimentos a uma gramática, uma vez que “…a complexidade de pensamentos e emoções que suscitam, constituem uma sintaxe.”

GEO - POLÍTICA DOS ALIMENTOS

Na Europa, os irlandeses conheceram a fome ao longo da sua história bem como os habitantes dos países ricos de agora como a Suécia, a Dinamarca e a Noruega. Yeats conta que, no século XII, uma condessa irlandesa vendeu a alma ao Diabo para salvar o seu País da fome. Os romanos, que herdaram dos etruscos o gosto pela cozinha sumptuosa, expandiram-se ao ocuparem países produtores de cereais como o Egipto, e avançaram para Leste numa procura de condimentos que inspiraram sem duvida os descobrimentos portugueses na sua busca de especiarias e de novos alimentos. Um dos mais celebres banquetes romanos é o de Trimalcião, que Petronius descreve em Satyricon e que ilustra bem a decadência de uma sociedade em que o excesso liga indiscutivelmente a alimentação ao sexo.
A comida ou a falta dela, aguçam o engenho: Benjamim Thompson, Conde de Rumford (1753-1814), americano de nascimento, inventou uma sopa “portátil”, um cubo feito de caldo de vitela solidificado com pedaços de carne de porco e outros ingredientes com a intenção de melhorar as condições dos pobres, o 4º Conde de Sandwich (1718-1792) engendrou o manjar com o mesmo nome para não perder tempo à mesa de jogo, onde passou a maior parte da sua vida, e Napoleão foi o pioneiro da fast-food porque se recusava a perder mais do que dez minutos a comer.

OS GASTRÓNOMOS

É impossível falar-se deste tema sem referir o nome de Jean-Anthelme Brillat-Savarin - um bolo (Savarin) com rum, natas e fruta fresca, e um queijo (Brillat-Savarin) têm o seu nome - filósofo, político, escritor, gastrónomo, deputado e presidente da Câmara de Belley em 1793, cujo aforismo mais famoso e que não perdeu a actualidade, ganhando até em dimensão política, é: “ Diz-me o que comes e dir-te-ei quem és”. Durante a Revolução Francesa refugiou-se na Suíça e mais tarde nos Estados Unidos, onde chegou a tocar violino numa orquestra em Nova Iorque, aproveitando para introduzir os seus amigos americanos na prática hedonista de comer gelados e fondue e levando a cabo testes complicados nos quais era determinada a personalidade e importância em termos de inteligência e sensibilidade dos seus comensais, através dos comentários que faziam aos alimentos por ele preparados. A sua obra “ Fisiologia do Gosto: ou, Meditações Acerca da Gastronomia Transcendental”, um compêndio da arte da mesa, publicado em 1825, tem conhecido inúmeras edições e traduções, sem perder uma pitada de humor e de sabedoria. Está repleto de conceitos que fazem as delícias das mentes mais requintadas, tais como: “ O destino das nações depende da forma como são alimentadas”; “…Os limites do prazer ainda não foram encontrados nem determinados” ou “…A mesa é o ponto de encontro de todas as expressões da sociabilidade moderna: o amor, a amizade, os negócios, as especulações, o poder, as solicitações, o proteccionismo, a ambição e a intriga. “ Para Brillat-Savarin, todas as acções do ser humano têm dois propósitos: a preservação do indivíduo e a continuação das espécies. Nesse sentido, o homem foi abençoado com o dom da sensação directa e imediata de satisfazer a sua necessidade de comer aliado à “… capacidade extra de poder determinar e ter prazer com o que mais lhe agrada em termos de gosto.” Nos nossos dias, Diane Ackerman, em “A Natural History of the Senses” faz notar que o paladar é, dos cinco sentidos, o que melhor se pode desfrutar social e publicamente. As comemorações, sejam elas familiares – aniversários, casamentos, baptizados – amorosas ou de outra índole celebram-se com repastos, banquetes e libações e os sociólogos e psicólogos há muito que estudam a influência da alimentação na formação do indivíduo. É preciso não esquecer, nos tempos que correm, que o hábito de olhar para a televisão enquanto se come prejudica a comunicação entre as pessoas, uma vez que a mesa doméstica tem um fim educativo, deve ser um lugar onde se celebra a união e não as desavenças, o entendimento e não a repressão.
Mestres da cozinha como Marcus Gavius Apicius, autor do primeiro tratado de cozinha conhecido, “De Re Coquinaria” (séc. I d.C) o criado da corte de Luis XIV, Nicolas de Bonnefons (séc. XVII) , Antonin Carême (Séc XVIII-XIX ) e o grande Leonardo da Vinci (séc. XV –XVI) que, como se sabe, para além de pintor, escultor, arquitecto e inventor era também mestre de banquetes nas cozinhas de Ludovico Sforza, reforçaram a ideia da convivência e da celebração do prazer da mesa.
Na Literatura Portuguesa, Ramalho Ortigão, que era um fino gourmet, defendeu as virtudes da cozinha portuguesa sem esquecer a sua doçaria, (note-se o termo “fazer marmelada” e as suas implicações) e a obra de Eça de Queirós está recheada de referências à comida, à bebida e aos seus prazeres e inconvenientes. O Padre Amaro toma conta da sua diocese depois de Frade Hércules, o “Boa-Constrictor” ter “rebentado” após uma ceia e o avô de Jacinto morre depois de uma indigestão de lampreia enquanto que o neto, ao voltar a Tormes, à mesa de Zé Fernandes, se delicia com as sopas, as favas guisadas e os frangos corados, recuperando assim o gosto pela vida.
Convém também referir o famoso “Tratado Completo de Cozinha e Copa” de Carlos Bandeira de Melo (1848-1924) em que se percebe, sem sombra de duvida, que o autor leu “A Cidade e as Serras” de Eça de Queirós, e que defende as ideias de Jacinto, quanto ao progresso e ao conforto.

ALIMENTOS E EROTISMO

As refeições também podem ter uma conotação fortemente erótica. Isabel Allende, por exemplo, elege o desinteresse à mesa, a par da televisão, do mau hálito, dos banhos gelados, da visão de um homem nu só com peúgas e de uma mulher com rolos na cabeça, como um dos maiores anti-afrodisíacos conhecidos. Já na Grécia Antiga, a gula e a volúpia estavam relacionadas. Sócrates dizia que os maus vivem para comer e os bons comem para viver. Quanto a São Jerónimo apontava a gula como incitação à luxúria e o jejum sempre foi considerado um acto de purificação.
No Império Romano, a comida tinha uma importância enorme, aguçada pelo fim do poderio de Roma. O psiquiatra e investigador Willy Pasini faz uma distinção interessante entre três culturas. Enquanto os patrícios de Roma se empanturravam de comida, os idealistas cristãos pregavam a contenção e o rigor e os bárbaros concentravam a sua dieta quase exclusivamente na carne assada no espeto, própria dos nómadas. Assim, a cultura romana estabelecia a relação entre o sexo e a comida numa base hedonista, centrada no prazer, a dos cristãos numa pecaminosa, criando os fundamentos de uma condenação moral do excesso, (não é possível esquecer como a origem do pecado é representada pela dentada que Eva dá numa maçã), e a dos bárbaros numa virilidade ligada à acção e à sobrevivência.
Catarina II da Rússia conseguiu engravidar e dar um herdeiro a Pedro, o Grande depois de ter comido caviar, o nascimento de Henrique IV ficou a dever-se a um paté de trufas e o da filha de Napoleão Bonaparte a uma pintada com recheio também de trufas, regada a champanhe. Madame de Pompadour comia moleja dada pelo seu real amante como remédio contra a frigidez e Cleópatra seduzia os apaixonados com lautos festins em que ameaça de envenenamento era também uma constante. A literatura, a pintura e, no geral, toda a cultura ocidental estão recheadas de referências à comida. Casanova alimentava a sua volúpia com uma dieta à base de esturjão, carne de caça, trufas e vinho da Saxónia, Marcel Proust em “Do Lado de Swann” consolava a sua melancolia com a recordação das “madalenas” que a mãe do pequeno Marcel fazia em Combray, as personagens de “O Leopardo” de di Lampedusa são apresentadas num banquete, o “Decameron” de Boccacio explicita bem a forma como os religiosos demonstram os seus interesses eróticos através da comida e o Marquês de Sade preferia a carne de pombo embora, para ele, a alimentação fosse, como já foi dito, “funcional e sistemática”. Quanto a Lutero, apesar do seu ascetismo, perdia-se por banquetes e Jean-Jacques Rousseau demonstrava a sua postura racionalista, privilegiando os repastos à base de vegetais.
A visão da comida é bastante mais poética nas civilizações orientais, onde as refeições estão ligadas ao despertar dos sentidos e a prazeres subsequentes, uma experiência sofisticada e mística que abre um número infinito de possibilidades. Jean – Bernard Naudin e Odile Godard em “Sabores das Mil e Uma Noites” ( Ed. Difusão Cultural, Lisboa) aproveitam as histórias da prolixa Xerazade para falarem do luxo, “essa despesa que vai para além do necessário”, aliada à noção de cortesã, a mulher que corteja e entretém o seu senhor, sem esquecer a utilização dos alimentos para levar a cabo a sedução.
Mas a comida e o sexo estiveram sempre intimamente ligados e os rituais da alimentação abrangem um grande número de tabus, dos quais o mais controverso é, sem dúvida, o do canibalismo. (Gargântua que, como se sabe, possuía um apetite ilimitado, comeu de uma assentada seis peregrinos numa salada). Há quem defenda a teoria de que o canibalismo possui uma implicação sexual e erótica, uma vez que representa a total fusão numa outra pessoa. Poderá estar relacionado tanto com a ideia do terror da solidão após o orgasmo, como com rituais mágicos e religiosos, como a crença na transferência de poderes. O célebre navegador inglês James Cook foi devorado pelos nativos, em 1779, na Polinésia, como sinal de respeito pelos dons extraordinários que lhe eram atribuídos e o Padre Jean de Brébeuf, depois de mostrar uma bravura extraordinária perante as torturas dos índios Iroqueses, em 1649, em Ontário, foi devorado pelos mesmos índios que assim esperavam ganhar a sua força. Mais recentemente, Idi Amin dedicava-se ao canibalismo com a mesma intenção de subtrair as qualidades de outras pessoas em proveito próprio.

Apesar de presentemente estarmos a viver, no mundo ocidental, uma época de abundância e, como tal, haver a tendência para se votar os gordos ao ostracismo, (a fórmula “gordura é formosura” parece ter passado à história), ainda restam alguns resquícios de que a gordura está ligada à prosperidade, à sabedoria e à bonomia. Ainda segundo Willy Pasini, autor de “A Alimentação e o Amor”, os políticos, dirigentes e personagens fortes do mundo da finança que se apresentam como bem nutridos, suscitam mais simpatia do que os magros. Uma das figuras obesas que exerce um permanente fascínio é sem dúvida a imagem de Buda. Mário Soares e Helmut Kholn que aliás, recentemente, publicou um livro de cozinha, são disso exemplos. A pressão social instiga-nos a comer muito e sempre, enquanto aumentam as preocupações em relação a uma dieta saudável e equilibrada. Também nos pressiona no sentido de manter a elegância e a boa disposição. Segundo Margaret Visser (“Sins of the Flesh” Ed. Granta) o vegetarianismo seria uma resposta a este dilema, tanto mais que, “Nas sociedades mais ricas atingiu-se um tal estado de saciedade e de exaustão na escolha que desejamos ter algo que possamos rejeitar.” Neste caso trata-se da carne uma vez que levanta uma questão do foro ético, a da crueldade para com os animais a qual, ainda segundo Visser “faz despertar a nossa culpa, enraizada na chamada mentalidade de “campo-de-concentração”, um lugar onde a crueldade acontece em segredo, para que possamos adormecer as nossas consciências. Estas ideias são apoiadas pelo escritor sul-africano J.M. Coetze, um vegetariano convicto que recorda que o respeito pela vida pode não passar de uma espécie de “moda” como aconteceu em 1920 quando Gandhi esteve em Inglaterra e os seus hábitos de frugalidade se tornaram um “must” a que aderiram figuras como Bernard Shaw, Edward Carpenter, os Teosofistas e os Fabians. Em oposição a Coetze e Visser, pode citar-se o escritor Sean French que escreveu o seguinte: “ Gosto de sangue frito. Gosto de partes de animais com gostos e texturas improváveis. Da acidez da urina nos rins que atraiu Leopold Bloom. Da consistência de borracha das tripas que podem saber a uma botija de água quente mal passada. Da alvura macia dos miolos de vitela... O problema é que nos ensinaram que a comida deve ser fresca e completa, exactamente como nos ensinaram que o sexo deveria ser um prazer racional e nada complicado. Evidentemente que “algum” sexo deveria ser assim mas, apesar de uma sardinha de cinco dias não ter nenhuma graça, muitas vezes o prazer da comida está relacionado com o processo da decomposição”. Um dos exemplos mais comuns é o do queijo que já é uma decomposição do leite e de certas peças de caça que só estão boas quando começam a estar cobertas de vermes.
Uma das gurus da alimentação nos Estados Unidos, Susan Power, tem tentado libertar os americanos do que ela chama de disparates espartanos, fazendo apelos ao prazer da boa mesa e classificando a anorexia não como um sinal de elegância mas como uma doença. De um momento para o outro as dietas mediterrâneas, em que o azeite e outras gorduras naturais ocupam lugar de destaque, começaram a ser louvadas e glorificadas. O facto de o vinho, quando bebido com moderação, ser considerado benéfico para a saúde tem sido amplamente divulgado. Nunca é demais referir o mito dionisíaco que liga o seu consumo à capacidade de ultrapassar todos os limites, incluindo o sexual. A embriaguez está também ligada à ideia de iniciação cósmica e erótica. Dioniso, o deus filho de Zeus, contribui para a divulgação da vinha na Europa e introduziu esta bebida nos “bacanais”. A sua ligação com o sexo e com os alimentos contribuía para canalizar energias, libertando as pessoas de convenções e fazendo-as ultrapassar os seus próprios limites. Ainda segundo Passini “…é no âmbito religioso que os alimentos começam por adquirir conotações eróticas, primeiro com as Bacantes, depois com os Astecas e com os Cristãos. A comunhão, ou união com a divindade, passa pela ingestão da sua carne e do seu sangue. “Quanto a Afonso XII, recompunha-se das canseiras amorosas com sopas de vinho e o satirista e retórico romano Apuleio escreveu em “O Asno de Ouro” que “… o vinho serve para vencer a cobardia do pudor e ganhar forças para o prazer”. Nunca é demais lembrar Shakespeare, principalmente o seu “Falstaff”. Basta ler a peça “Henrique IV” para se saber como se alimentavam os ingleses, naquela época. À mesa da pousada de Eastcheap, Falstaff delicia-se, comendo lagosta com espessa mostarda de Tewkesbury, ovos com manteiga e rábanos tenros de Chersey, leitõezinhos assados de S. Bartolomeu, congro de Gravesend com ervilhas de Eton, cebola vermelha de Staine e açafrão de Espanha, capões de Upminster e Harrow e pastelão de veado de Derby e Darmoor, tudo bem regado com vinho das Canárias. Tal como Samuel Johnson e Mr Pickwick, Falstaff encontra a felicidade na taberna, onde se liberta de preocupações. Pelo contrário, uma antiga lenda talmúdica, para mostrar que a desinibição deve ter alguns limites, conta-nos que Noé plantou a primeira vinha e regou-a três vezes, com sangue de cordeiro, de leão e de porco. Assim, quem bebe moderadamente fica alegre e vivaz como um cordeiro, quem enche mais o copo fica forte como o leão e quem exagera acaba a rebolar-se na lama como um porco. Quanto à relação da mulher com a bebida sempre foi ambígua e por vezes desagradável. Nas antigas sociedades grega e romana, a figura da bêbada é uma das mais ridicularizadas à excepção de Ovídio que, na “Arte de Amar”, aconselha a mulher a beber com moderação para aumentar os seus dotes de sedutora. Os exemplos de mulheres que bebiam por prazer não são muitos. Fala-se em Cleópatra, em Madame de Mailly, na Pompadour, ambas favoritas de Luis XV, e na condessa de Castiglione. Neste capítulo e até aos nossos dias, as mulheres têm estado em posição de desvantagem. É preciso dizer-se que o vinho é ainda considerado como um dos mais populares afrodisíacos, capaz de soltar as línguas, as mentes e os corpos, tornando as pessoas desinibidas e verdadeiras (“in vino veritas”).
Mas, no capítulo dos afrodisíacos, a loucura parece apossar-se dos mais tímidos e recatados. São poucos os que resistem à tentação de experimentarem filtros do amor, mezinhas que aumentam a potência sexual ou tisanas que inebriam os sentidos. Como se sabe o termo provém das “afrodisias”, orgias sagradas em honra de Afrodite, a deusa do amor que emergiu nua das ondas. Em “Esconjuros, Feitiços e Poções Eróticas”, Emma Cohen fala das práticas de sedução através de substâncias que tanto podem ser pedras moídas como sementes, óleos e órgãos de animais e lembra que grandes nomes da literatura, da ciência e da filosofia como Hipócrates, Cornelius Agrippa, Mircea Eliade e até Isaac Asimov se dedicaram a este assunto. A lista das plantas miraculosas inclui a urtiga, o açafrão, o pistácio, o alho-francês, a aboborinha e as alcachofras, a das especiarias, o alho, a canela e o cravinho. Quanto aos alimentos de forma fálica como os alhos-porros, as bananas, os espargos, os pepinos e as enguias, bem como os que possuem uma simbologia feminina como as ostras, os figos e o caviar (por serem ovas) são de efeito garantido. Mas o mais frequentemente citado é sem duvida a trufa que, na sua composição inclui uma hormona, a androsterona, que o varrasco possui em grande quantidade. É essa a razão pela qual são utilizadas porcas na sua procura. A androsterona agrada também aos humanos. Daí que Brillat-Savarin afirmasse que, “…a trufa derrete as mulheres e cria uma maior volúpia nos homens.” Até Alfredo Saramago que não acredita na cozinha afrodisíaca, acaba por dizer que “as trufas cozidas em cinza facilitam os jogos amorosos.” Quanto ao Marquês de Sade punha cantiridina nos doces que dava às prostitutas e um tal Amedée Doppet aconselhava os homens a untarem o pénis com uma pasta feita de mel, óleo de noz-moscada, pimenta preta e musgo. Há quem aconselhe pomba com vinho tinto, leite com pinhões, certos cogumelos, o chocolate, (defendido pelos jesuítas, que o comercializavam, e cujo consumo, mesmo durante o jejum da Quaresma foi autorizado pelo Papa Pio V) e até a açorda à alentejana, considerada afrodisíaca talvez pela inclusão de ervas aromáticas como os coentros ou o poejo. Quanto à panóplia de órgãos de animais alguns deles em via de extinção, nem vale a pena referir e espera-se que caia em completo desuso. A terrível Messalina, de desagradável memória, usava a vulva de ovelha e os úberes de vaca como excitantes infalíveis.
Cabe aqui fazer uma menção especial a um livro “Afrodite, Histórias, Receitas e Outros Afrodisíacos” de Isabel Allende, “divagações eróticas” que ela dedica aos “…amantes brincalhões e – porque não? – também aos homens assustados e às mulheres melancólicas.” Allende, agora com cinquenta anos, (o que ela chama de “crepúsculo”), sente que, com essa idade, em vez de desejar abrandar o ritmo tem, pelo contrário o desejo de “pecar e reflectir nas fraquezas da carne e na sua relação entre a comida e o erotismo”, com a intenção expressa de continuar a desfrutar de ambos, “enquanto as forças e o bom humor lhe permitirem”. Sempre com este pretexto em mente, delicia o leitor, ao longo de mais de trezentas páginas com aforismos, citações, receitas, contos sobre ela própria e sobre outros e histórias dentro da história. Explica, por exemplo, a diferença entre a pornografia, “um método sem imaginação” e o erotismo, “uma inspiração sem método.” Ou seja, “erótico é quando se usa uma pena, pornográfico quando se usa a galinha.” Com capítulos inteiros dedicados aos cinco sentidos, a arquétipos como o sedutor e o gigolô, a lugares como o harém, é coadjuvada nesta aventura por um amigo, Robert Skekter, o autor das fantásticas e belíssimas ilustrações e pela própria mãe, Panchita Llona, a feiticeira autora das receitas incluídas no livro. Em sua opinião, um jantar especial deve ser pensado como “…um crescendo, que começa com as notas suaves da sopa, passa pelos harpejos delicados da entrada, culmina na fanfarrice do prato principal, ao qual se seguem por fim os suaves acordes da sobremesa. O processo é comparável ao de fazer amor com arte, começando com as insinuações, saboreando os jogos eróticos, chegando ao clímax com o estrondo habitual e, por fim, mergulhando num afável e merecido repouso. “Allende refere ainda, comovidamente, o longo tempo de luto pela sua filha Paula e de como foi capaz de sobreviver e de retomar o gosto pela vida, através do prazer da mesa.

AS RECEITAS

Ao longo dos tempos, as receitas de cozinha têm sido, na sua maioria, transmitidas oralmente de uma geração para outra, numa corrente ininterrupta de segredos e confissões, por vezes ciciadas em leitos de morte. Mas a literatura da alimentação teve um incremento extraordinário depois da 1ª Grande Guerra, quando começaram a aparecer livros de cozinha e revistas femininas com esse tipo de informação já que, anteriormente, obras como “Household Management” de Mrs Beeton (1861) ou “Modern Cookery” de Eliza Acton (1845) se concentravam quase exclusivamente na organização da casa e do pessoal que aí trabalhava. Quando a mulher passou a ter de cozinhar ela própria, para a família e para os convidados, tudo mudou. Segundo Ambrose Heath, autor de mais de setenta livros de cozinha, preparar uma refeição pode constituir um projecto de sedução, de ambição e de exibicionismo, pode servir para conseguir um aumento no emprego, para exibir um estatuto social, ou ainda para delimitar territórios e levantar barreiras ou ainda, pelo contrário, para gerar concórdia e dar a conhecer outros gostos e paladares, para servir de motor de aculturação. As cidades dos nossos dias estão cheias de restaurantes com comida das mais variadas procedências. A chamada “aldeia global” também inclui o estômago. Uma pioneira neste capitulo foi Elizabeth David que, nos anos cinquenta, ao introduzir receitas de cariz mediterrâneo, contribuiu para uma alteração significativa nos hábitos alimentares dos ingleses que, como se sabe, são tendencialmente isolacionistas e nacionalistas nesta e noutras áreas. Quanto a escritoras como Peg Bracken e Shirley Conran nas suas obras, respectivamente, “I Hate to Cook Book” e “Superwoman”, publicados nos anos setenta, foram o espelho dos movimentos feministas que defendiam acaloradamente o abandono da cozinha por parte da mulher. Nos anos oitenta, pelo contrário, desenvolveu-se a moda dos livros de gastronomia porno. Hoje em dia os livros de cozinha atingiram graus de sofisticação tão elevados que é quase impossível abrir uma dessas obras que não esteja cheia de referências culturais, plena de anedotas, histórias, contos e tradições, acompanhadas de estudos científicos, religiosos, semânticos e antropológicos ou ainda, de considerações filosóficas. A comida parece ocupar agora um lugar na nossa civilização que nunca deveria ter abandonado. É através da comida que temos a noção do nosso poder sobre a vida e sobre a morte e é também através da comida que estabelecemos uma convivência e uma relação com os outros seres vivos.

OBRAS CONSULTADAS PUBLICADAS EM PORTUGAL:

“Comida Inteligente. A Dietética do Cérebro” de Jean-Marie Bourre, Ed. Gradiva, 1993
“Esconjuros, Feitiços e Poções Eróticas” de Emma Cohen, Ed. Temas da Actualidade, 1993
“Sade, Fourier e Loyola”, Roland Barthes, Edições 70, Lisboa.
“A Carne e o Diabo” de Jean-Didier Vincent, Fórum da Ciência, Ed. Europa-América, 1997
“A Alimentação e o Amor” de Willy Pasini, Ed. Difusão Cultural, 1994
“Amor Luxo e Capitalismo”, Bertrand Editora, Lisboa, 1990.
“Para uma História da Alimentação no Alentejo” de Alfredo Saramago, Ed. Assírio & Alvim, 1997
“Afrodite. Histórias, Receitas e Outros Afrodisíacos” de Isabel Allende, Ed. Difel, 1997
“Receitas Afrodisíacas & Desenhos Eróticos” de Afonso Praça e Francisco Simões, Editorial Notícias, 1997
[*Helena Vasconcelos nasceu em Lisboa, Portugal. Foi para a Índia com quatro anos e, desde então, nunca mais parou de viajar. Formada pela Faculdade de Letras; em Filologia Germânica pela Universidade Clássica Lisboa e em História de Arte na Escola Arco, Lisboa, tem como ocupações principais escrever, ler e viajar. É atualmente, e desde o primeiro número, colaboradora permanente da revista ELLE portuguesa. Colabora com o "Jornal Público" desde a sua fundação – suplemento cultural Y - tendo também trabalhado no jornal "O Independente". Promove ações de Formação na área de apoio e divulgação à Leitura em Bibliotecas Municipais, orientando Comunidades de Leitores em Bibliotecas e, desde há cinco anos, na Culturgest, em Lisboa. É promotora e dinamizadora de “Os Clássicos na Gulbenkian”, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; organizou os ciclos de conferências da Feira do Livro de Lisboa de 2004 e de 2005 (com Paula Moura Pinheiro). Escreveu sobre Arte em vários jornais, catálogos e revistas da especialidade, dos quais se destacam Neue Kunst in Europa (Alemanha), Juliet (Itália). Publicou um livro de contos em 1988 “Não Há Horas para Nada” (Ed. Relógio D’Água) que recebeu o Prêmio Revelação do Centro Nacional de Cultura. Publicou “Mário Eloy. O Pintor do Desassossego”, Ed. Caminho. Contribuiu com “short stories” para várias revistas portuguesas e estrangeiras. Criou e dirige a revista on-line "Storm-Magazine. O lugar da cultura" - www.storm-magazine.com.]


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