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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA



“Louca, louca, estou farto de te aturar…!”, gritava amiúde, independentemente de a questão geradora da discussão, se é que havia discussão, ter sido motivo que bastasse para aquela reacção intempestiva. Por vezes, um leve comentário, só isso, ainda que alheio a qualquer pontual problemática conjugal, mesmo que suspensa, era, por si só, capaz de espoletar uma crise de violência verbal.
“És uma louca, estou farto de te aturar…, és uma puta, puuuta!”, ecoava simultaneamente com o estrondo de um pontapé numa porta, a atroada de uma outra a fechar. E aqueles olhos chispavam lume, o arqueado das sobrancelhas acentuava-se, o rosto crispava-se como possesso por um demónio!
Ódio? Assemelhava-se a um ódio desmedido ainda que injustificável. Seguramente, um ódio vindo à tona de algum desequilíbrio mental ou, havia forçosamente que o admitir, o que era ainda pior para ela, de alguma encenação que o resguardasse de qualquer deslize verbal que evidenciasse a sua vida dupla.
E como se iniciava, assim de repente tudo se finalizava. Somente, como uma intransponível barreira de aço, o silêncio entre eles perdurava através dos dias.
Para mais tarde retornar o sorriso sedutor, a macieza da voz ligeiramente rouca e sensual, o ar paternalista e protector que fazia cair na armadilha da esperança. Sempre tão cheio de atenções! Tão pronto a providenciar aqueles pequenos nadas que podem fazer a suprema felicidade de uma mulher!
Todavia, como uma descarga eléctrica duma nuvem congestionada, a voz tonitruante rugia, invariavelmente, mesmo no meio dum diálogo terno e amoroso, até logo a seguir ao acto de fazerem amor: “Estou farto de te aturar! És uma louca, puta, puuuta!”
Ela queria rugir como uma fêmea em perigo perante um predador, responder com idênticas pedradas à sua agressividade! Atirar ódio ao ódio! Conquistar algum equilíbrio emocional, dando resposta cabal que aplacasse o seu orgulho de mulher, que aquietasse o seu eu gritante de revolta. Porém, respondia-lhe com o silêncio, amordaçada pela força do ódio e da desilusão que a contagiavam no momento.
Vergastada pelas palavras ofensivas e desmedidas, olhava-o impotente na dor de não ser capaz de esgrimir verbalmente tudo o que lhe ocorria veloz pela mente como um corcel a galope, e olhava-o atordoada por não compreender o que poderia estar por detrás daquele comportamento violento e imprevisível. Para, por fim, se encolher dentro do silêncio que ficaria a reinar por entre o sofrimento de amar e odiar aquele homem!
Eu escutava estas confidências dolorosas por entre exclamações de repúdio e de espanto.
Confidenciara-me certa vez, que a culpa seria do filho. Não podia ser de outra coisa. Tresloucava-o saber que o filho de ambos era, visivelmente, mais apegado à mãe. Um dia, acabara por desabafar que deparando com os dois, a ela e ao filho, em demonstrações de afecto beijando-se repetidas vezes numa doce cumplicidade, chamara pelo filho em tom tão imperioso e gritante que a criança fugira apavorada refugiando-se debaixo da cama.
Contara-me uma outra altura que o filho, na sua presença, se aproximara um dia do pai e o abraçara imprevistamente. “Que é que tu queres?”, vociferou soltando-se do amplexo filial. A partir daí, nunca mais a criança se atrevera a abraçar o pai. Mesmo quando por ele era incentivado, em dias de alguma bonomia e acentuada boa disposição, o miúdo hesitava e logo ouvia: “Só abraças a tua mãe, é?”.

Persuadi-a a não lhe dar importância. Falei-lhe do “complexo de Édipo”. Aconselhei-a a conversar com ele. Da naturalidade dessa preferência afectiva. Ele entenderia.
Tempos depois, ouvi-a titubeante e perturbada falar do que lhe provocava sofrimento.  “Eu sei que ele nos ama, a ele principalmente…”
Fala!, supliquei sentindo que havia algo que podia ser muito grave, e que tanto lhe custava a abordar.
“Não sei se me atrevo, se devo...”, dissera então, abalada e cheia de hesitação.          Lentamente começou por confidenciar: “Dou em louca se o não faço”, e tremia, toda ela se agitava como vide sacudida pela ventania. “Tenho tanto medo de estar errada..., não me cabe na cabeça o que me vai pelo coração. E se são suspeitas infundadas? Que horror! Que horror!”, gemia encobrindo o rosto com as mãos trementes.
Imaginei imediatamente haver mais alguém na sua vida. Uma outra mulher. Um outro lar. Talvez outro filho...”Assim fosse, mil vezes assim fosse!”, gritou como se um murro de dor lhe esmagasse o peito! E contou:
“Um dia cheguei imprevistamente a casa. Sentira uma daquelas fortíssimas dores de cabeça que de vez em quando me acometiam, e o patrão, gentilmente, mandou-me embora para que repousasse.
O meu filho, com a roupa desordenada, silencioso, olhava para o pai e o seu silêncio era o gume de uma faca cortante, enquanto ele o retinha nos braços e o beijava daquela forma...Como uma louca, arranquei-lhe a criança dos braços.
Nunca nenhum de nós tocou no assunto, nesse momento de dor, de humilhação…e de abuso…, como se fosse apenas um sonho mau trazido para a luz do dia ou se tratasse tão-somente de uma visão alucinada fruto da minha mente doentia”.
“Louca, louca!”, continuou a gritar.

[Bernardete Costa é escritora Portuguesa]

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