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quarta-feira, 23 de junho de 2010


Elementar , meu caro Watson!
Por Helena Vasconcelos

Arthur Conan Doyle nasceu há 150 anos

 A Inglaterra do século XIX foi uma idade de ouro. Das Artes às Ciências, da Política à Filosofia, figuras como Dante Gabriel Rossetti, Robert Browning, Lewis Carroll, Dickens, Robert Louis Stevenson, Kipling, Darwin, Florence Nightingale, as irmãs Brontë, Oscar Wilde, grandes exploradores como Scott e Burton, entre muitos outros ( e outras) deram o seu contributo para uma alteração profunda na sociedade e nas mentalidades.
No rol destas personalidades, o médico e escritor Arthur Conan Doyle destacou-se como a quintessência do homem vitoriano: amante do progresso, civilizado, criativo, aventureiro e, também contraditório, impulsivo e misterioso. O criador da célebre personagem de Sherlock Holmes foi um dos que mostraram estar em perfeita consonância com seu tempo, da mesma forma que Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo espelharam o espírito do Renascimento.
Arthur Doyle nasceu em Maio de 1859, em Edimburgo, Escócia, numa família ligada à cultura e às artes. O avô foi um caricaturista famoso, o tio desenhou a capa do primeiro número da revista Punch e o pai, Charles Doyle, era arquitecto e pintor. A mãe, Mary Doyle, a quem ele sempre chamou carinhosamente “Ma’am”, uma irlandesa que contava histórias e que criou praticamente sozinha dez filhos, parece ter sido um modelo de virtudes apesar de haver provas de uma longa ligação de cariz sexual com um dos seus inquilinos, o patologista Bryan Waller, quinze anos mais novo do que ela, que a ajudou a sustentar a extensa família. Waller foi, talvez, a personalidade que mais influenciou o jovem Arthur, cuja infância foi tudo menos pacífica ou desafogada. Charles Doyle era um alcoólico e um falhado, sofrendo de uma espécie de demência que se manifestava pelo excesso de clarividência: via mensagens e sinais em tudo e afirmava ser perseguido por demónios. Arthur - que ainda não usava o apelido Conan - estudou num Colégio de Jesuítas mas quando completou a escolaridade em 1875, já tinha renegado a religião católica, declarando-se agnóstico. Foi ainda Brian Waller - nunca mencionado nas memórias do escritor - quem terá deligenciado para que Doyle curssasse Medicina mas, apesar deste proteccionismo, o seu papel na vida do escritor nunca foi pacífico nem claro. Inquilinos sinistros, padrastos manipuladores, pessoas aprisionadas em dramas morais e familiares que certamente teriam feito as delícias do doutor Freud, irromperam como personagens em histórias posteriores e há mesmo quem afirme que a figura do malévolo Moriarty – a nemesis de Holmes - foi inspirada pela personalidade dúbia de Waller.
Já na Faculdade, em Edimburgo, Doyle tornou-se assistente de Joseph Bell, um médico excêntrico cujo “truque” mais famoso era diagnosticar os males dos seus pacientes com um único olhar, sem falar com eles, nem os examinar. Mais tarde, Doyle transpôs para Sherlock Holmes as técnicas de Bell, tornando-as credíveis. Embora seja difícil aceitar que, através de pura dedução científica, o grande detective consiga, numa fracção de segundo, perceber que o homem que acabou de chegar no comboio às 7: 28 h é o segundo filho de um Major das Índias com um interesse especial por borboletas e que pela observação dos seus botões de punho descobre o que ele comeu ao pequeno-almoço, a genialidade de Doyle manifesta-se na forma como, hoje em dia, tudo isso seja possível a partir do trabalho em laboratórios sofisticados de investigação criminal.

Depois de acabar o curso, o irrequieto e curioso Conan Doyle embarcou em viagens exploratórias, primeiro num baleeiro até ao Árctico e depois num cargueiro que percorreu a Africa Ocidental. Em 1885 casou com Louisa Hawkins, de quem teve uma filha e um filho e, cinco anos depois, deslocou-se a Viena para aprofundar os estudos de oftalmologia. No entanto, quando voltou a Londres para iniciar a prática dessa especialidade “não conseguiu um único paciente “, como escreveu na sua autobiografia, um facto que não o perturbou uma vez que lhe deixava mais tempo para escrever. Por essa altura já se tornara famoso com as aventuras de Sherlock Holmes, mas criara uma aversão pela personagem e desejava ardentemente “matá-lo” para se poder dedicar ao trabalho “mais sério”, isto é, aos seus romances históricos. Entretanto Louisa ia definhando com uma tuberculose galopante e, em 1897, Arthur iniciou um affair escaldante com Jean Elizabeth Leckie, uma jovem beldade que lhe arrebatou por completo o coração. No entanto, continuou a cuidar da mulher com um sentido de dever inquebrantável e só depois de ela morrer, em 1906, é que se apressou a casar com Jean, de quem teve mais três filhos.
De acordo com o espírito da época, Doyle foi um infatigável polemista, aderindo a várias campanhas tanto de carácter social como relacionadas com a justiça. A sua vida foi marcada por aventuras que experimentou directamente, não se limitando a descrevê-las na escrita. Depois de uma viagem à África do Sul escreveu um longo tratado sobre a Guerra dos Boers o qual, por defender as acções (pouco justificáveis) da Inglaterra, lhe valeu o título de Sir. Experimentou andar de balão e de avião, entusiasmou-se com a prática de futebol, críquete e esqui - foi a primeira pessoa a importar o respectivo equipamento da Noruega para a Suiça - e tornou-se um dos primeiros cidadãos britânicos a serem multados por excesso de velocidade num automóvel. Durante a Iª Grande Guerra desenvolveu uma actividade frenética, avisando a Marinha inglesa do perigo que constituíam os submarinos e recomendando a construção de um túnel sob o Canal da Mancha - sugestão que, na altura, foi considerada lunática pelos seus concidadãos - para impedir um eventual bloqueio por parte dos alemães. A sua contribuição passou também pela invenção dos coletes salva-vidas e a dos capacetes de aço para os soldados.
Conan Doyle envolveu-se também na campanha contra a situação do Congo ( ex-belga) e tratou, ele próprio de solucionar dois famosos casos de polícia: o primeiro foi a demonstração de inocência de um advogado de origem indiana George Edalji, envolvido numa história de mutilação de animais, e que, em 2005, foi aproveitada pelo escritor Julian Barnes como trama do seu livro “Arthur e George” ; o segundo foi com um judeu alemão, também injustamente acusado de fraude. De ressalvar que foi graças a Doyle que foi criado o Tribunal de Recurso Criminal para evitar erros grosseiros da Justiça.
A Iª Grande Guerra teve um efeito devastador na vida do escritor. O conflito vitimou o seu filho Kingsley, o seu irmão Innes, dois cunhados e dois sobrinhos e lançou-o numa profunda depressão, da qual só emergiu para se dedicar a fundo ao Espiritualismo. Com a mesma teimosia e determinação que demonstrara nas suas experiências científicas, lançou-se na procura de uma prova conclusiva da vida depois da morte, escrevendo a sua famosa “História do Espiritualismo”, um tratado no qual defendia a existência de fadas e duendes. A sua amizade com Harry Houdini, que Doyle acreditava possuir dons sobrenaturais, azedou bastante quando o mágico lhe explicou que não acreditava em tais fenómenos e que os seus famosos truques eram fruto da manipulação da ilusão. Por muito que lhe tenha custado, Doyle ficou para a História, principalmente devido a Sherlock Holmes e à criação de histórias dentro de outras histórias , que por sua vez, se dilatam no tempo e no espaço com peripécias, mistérios e soluções rocambolescas, crimes e castigos. O espírito vitoriano que cunhou o conceito de “invenção” e que privilegiava a eficiência e o controle - instrumentos indispensáveis para governar um Império - foi elevado à sua mais alta posição pela personagem do detective que tudo vê, tudo controla, tudo sistematiza e tudo resolve com um esforço mínimo e que combate as forças do Mal, personificadas em Moriarty. Doyle fez o mesmo. Foi um homem patriótico, incansável, generoso, corajoso e com sentido do dever e que, contraditoriamente foi também um adúltero e um apologista ferrenho do espiritismo e das ciências ocultas que colidiam com a sua formação científica. A 7 de Julho de 1930, encontraram-no no jardim, sem sentidos e com uma mão a agarrar o coração. Acabou por morrer pouco depois. Tinha 71 anos e as suas últimas palavras foram para a mulher. “És maravilhosa”, disse. E partiu.
Mas Sherlock Holmes e o inseparável Watson seguiram o seu caminho.


[*Helena Vasconcelos nasceu em Lisboa, Portugal. Foi para a Índia com quatro anos e, desde então, nunca mais parou de viajar. Formada pela Faculdade de Letras; em Filologia Germânica pela Universidade Clássica Lisboa e em História de Arte na Escola Arco, Lisboa, tem como ocupações principais escrever, ler e viajar. É atualmente, e desde o primeiro número, colaboradora permanente da revista ELLE portuguesa. Colabora com o "Jornal Público" desde a sua fundação – suplemento cultural Y - tendo também trabalhado no jornal "O Independente". Promove ações de Formação na área de apoio e divulgação à Leitura em Bibliotecas Municipais, orientando Comunidades de Leitores em Bibliotecas e, desde há cinco anos, na Culturgest, em Lisboa. É promotora e dinamizadora de “Os Clássicos na Gulbenkian”, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; organizou os ciclos de conferências da Feira do Livro de Lisboa de 2004 e de 2005 (com Paula Moura Pinheiro). Escreveu sobre Arte em vários jornais, catálogos e revistas da especialidade, dos quais se destacam Neue Kunst in Europa (Alemanha), Juliet (Itália). Publicou um livro de contos em 1988 “Não Há Horas para Nada” (Ed. Relógio D’Água) que recebeu o Prêmio Revelação do Centro Nacional de Cultura. Publicou “Mário Eloy. O Pintor do Desassossego”, Ed. Caminho. Contribuiu com “short stories” para várias revistas portuguesas e estrangeiras. Criou e dirige a revista on-line "Storm-Magazine. O lugar da cultura" - www.storm-magazine.com.]

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