At the end of the page, you find a translator for your language .

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O VOO DO PÁSSARO

     Nas mãos em concha, a água da torneira e as suas lágrimas misturaram-se, mais uma vez. Esfregou os olhos, as orelhas, o pescoço… E a tosse, que lhe vinha do fundo da alma, deixou-a exausta. Olhou o espelho e este devolveu-lhe um olhar pungente, num rosto que o tempo e o cansaço começavam a deformar.
       - Isto passa… Estou só a lavar a cara – murmurou, tentando reunir forças para se afundar, de novo, no sofrimento das panelas, do fogão eléctrico, do formigueiro dos pulsos arroxeados…
       - Uma pessoa habitua-se, não? Talvez assim as coisas se tornem mais fáceis… - pensou, respirando fundo. No entanto, ficou, durante alguns minutos, a olhar para dentro de si própria.
Como podia ainda amar aquele homem? Tinha ficado refém da sua beleza? Edmundo era alto, esbelto, mas os seus belos olhos castanhos tinham o brilho do aço e o seu riso demoníaco espetava-se como um alfinete na sua alma. Ele farejava a sua tristeza como pasto do qual se sentia sempre faminto. Porque suportava ela aquele humor corrosivo, aquelas palavras que lhe zuniam dentro do ouvido e lhe caíam  na alma como praga maldita que tudo devasta? Porque não o abandonou, quando ele lhe deu aquele empurrão que a marcou para sempre? Porque tentava entender o seu  comportamento ? “A falta de compaixão é patológica”, dissera um neurocientista famoso que ela admirava muito. Ele afirmara que o comportamento humano tinha uma base neurobiológica, mas não deixava de acreditar na capacidade que temos de controlar, voluntariamente, respostas automáticas, impulsos básicos que nos podem levar a cometer actos cruéis. E ela também acreditava na força do livre arbítrio. Pensando bem… não estava resignada. Sabia que a resignação atrofia a alma, mas…porque gostava de o ver dormir serenamente como um anjo? Amava-o, mais do que nunca, naqueles momentos. Ah, se pudesse beijar os seus olhos pestanudos, a boca sensual, os sedosos cabelos grisalhos, as mãos pousadas na dobra do lençol… E como seria bom poder conversar com ele, mostrar-lhe a sua alma… No entanto, ele tinha sentimentos, não tinha? Porque amava tanto os animais, especialmente a Minnie? Era capaz de dar a vida por ela! E estava sempre a festejar a sua presença! Não lhe queria mal, mas invejava-a em segredo. Porém sentia que ele odiava, facilmente, as pessoas. Tinha poucos amigos.  Como podia amá-la, então? Mas porque teria ele casado? Às vezes, sentia a desistência muito perto de si como um poço negro…Sentava-se no bordo, a olhar para o fundo, a querer saltar para dentro, mas acabava por ficar sempre ali, exausta, atordoada como pássaro cativado por serpente.
      De súbito, ouviu fortes pancadas na porta. Ficou parada como animal perseguido. De um momento para o outro, a porta abriu-se e ele entrou, com a mão no cinto das calças.
       - O que estás aqui a fazer na casa de banho, há tanto tempo, Margarida? – berrou, com as narinas muito abertas. – Não vês que quero dar  banho à Minnie, idiota?! Além disso, é meio-dia e ainda não começaste a fazer o almoço! A que horas vou chegar à minha empresa, não me dirás?! E sabes que aqueles reles trabalhadores se aproveitam logo da minha ausência, não sabes?!...
       - Vou já, Edmundo… Desculpa! – murmurou Margarida, saindo, cabisbaixa, da casa de banho.
       - O que é isso? Agora não olhas para mim? -  gritou ele, à porta, mostrando os dentes e as garras.  “Desculpa… desculpa… desculpa…” é só o que sabes dizer?! Um dia, vais acordar transformada em burra! E estás a ficar uma barrica atarracada!  – ripostou, soltando uma gargalhada feroz. -  Não sei porque casei com tal mosquinha morta! E já lá vão mais de vinte anos! Não serves para nada! O fogão que o diga! E a cama também! Só engravidaste uma vez . Era uma rapariga. Tinha de ser! E morreu, claro!...
        Naquele momento, o olhar de Margarida voltou-se para ele, num assomo de dor e de revolta. O coração batia-lhe na garganta.
       - Não te lembras do empurrão que me deste, Edmundo? – acabou por dizer, com lágrimas na voz, como quem morre nas próprias palavras que pronuncia.
       - Se a Minnie não estivesse à espera do banho, engolias já essas palavras, estúpida Margarida sem pétalas! O meu mal foi não te ter educado à chibata!...- gritou ele, lançando-lhe um olhar ríspido. – Vem cá,  Minnie,  meu amor… Tu é que me entendes!
       E Edmundo agarrou ao colo uma cadela pincher,  preta e branca, de coleira e laço cor-de - rosa, que lhe deu, de imediato, uma grata lambidela no queixo.


       No dia seguinte, um morno sol primaveril inundava já a pequena cidade, quando Edmundo acordou em sobressalto.
       - Está quieta, Minnie! Olha que me rasgas os lençóis! O que se passa? Ela não está aqui no quarto? Que novidade, meu amor! Foi para o sofá da sala, como é costume. Ela é doida, sabes? Ontem fez o empadão de carne que eu adoro e quis jantar à luz das velas, vê lá tu!  Vá, minha linda, hoje é domingo! Deixa dormir o teu amigo!
        Porém, ao contrário do que era habitual, a  cadela não lhe obedeceu. Saltou  para cima da cama e  puxou o cobertor para trás.  Os seus latidos  faziam lembrar  choro de criança.
       - Pronto, Minnie! Vou já! Sabes que não te posso ouvir chorar assim…
       Edmundo esfregou os olhos sonolentos, levantou-se  e seguiu, lentamente, a cadela até à sala. Móveis e objectos decorativos, sem  vestígio algum de pó,  brilhavam ao sol da manhã. As almofadas estavam espalhadas no chão. Edmundo aproximou-se e encontrou Margarida estendida no sofá, com os lábios arroxeados, o rosto cor de cera, o corpo gelado e rígido… Parecia olhá-lo fixamente nos olhos. A seu lado, estava um frasco vazio de soporíferos.
       - E agora?!... Tenho de aquecer comida enlatada? E quem vai fazer as compras, Minnie?


Maria João Oliveira [ Escritora, Professora- Portugal]
Retornar...

Um comentário:

  1. Belo conto, parece que conheço a história e seus personagens.
    Adriana Viegas Palomina-RS

    ResponderExcluir

Obrigada por sua visita!