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quarta-feira, 28 de abril de 2010

Maria João Oliveira*

As duas faces da moeda

(Para Ana Merij)

Tinha nas mãos o resultado da sua endoscopia digestiva. O relatório médico era bem claro: adenocarcinoma com metástases no fígado.
E agora?!... Ela tinha vencido muitas tempestades ao longo da vida. Na sua infância, quando a mãe pilotava o avião, conseguia sobrevoar o mar, altas montanhas de cumes pontiagudos, fumarolas de erupções vulcânicas que não a sufocavam. Esta era a face da moeda que a construía por dentro. Porém, quando o piloto era o pai, o avião perdia alguns parafusos e ela tinha muito medo das trepidações da asa.
Contudo, sempre lançou redes no temporal, graças também a uma impetuosidade emotiva que nunca a abandonou. Era uma força psíquica que tomava conta dos remos e se alimentava da sua capacidade de amar. Uma força que lhe estava a fugir naquele momento. Ao regressar a casa, sentia a boca seca e os joelhos a tremer. Desceu do autocarro, tentando não pensar naquele relatório que lhe anunciava uma morte próxima. Agarrava-se a um frágil caule de esperança, para não deslizar até ao fundo do precipício. Não, aquilo não podia ser verdade! No limite das forças, introduziu, lentamente, a chave na fechadura. O avião tinha explodido dentro dela e a sua caixa negra estava na mala de verniz enfiada no braço. Como esconder o terrível segredo que ela continha? Sempre soubera controlar os seus impulsos, pensar antes de agir, para não se magoar nem ferir os outros, embora estivesse convicta de que o ímpeto era fundamental na construção de sonhos ou para dar colo instantâneo a quem estivesse à beira do abismo. Tratava-se de uma moeda de duas faces, à qual sempre procurou estar atenta. E lembrava-se, muitas vezes, das palavras do sábio Salomão:- “A resposta branda desvia o furor, mas a palavra dura suscita a ira.”
Porém, naquele momento, desejou o abraço da morte, ali mesmo, antes de olhar nos olhos aqueles que amava. Com as mãos a tremer, deu mais uma volta à chave. Um medo atroz devorava-a como larva dentro da maçã. De súbito, a porta abriu-se. E o sorriso de sua mãe pousou, suavemente, na sua angústia. A felicidade brilhava no seu rosto.

- Isabel, o Nuno sorriu! Ele sorriu, filha!

- Como, mãe?! Sabes que eu daria a vida por um sorriso do meu filho! Sonho com esse milagre, há tanto tempo!

Em pranto, Isabel abandonou a mala no corredor e correu para a sala. Nuno estava sentado no chão, com alguns brinquedos à sua volta. Tinha apenas cinco anos e era autista. Ao ver a mãe, a criança não desviou o olhar como era habitual. Aceitou uma caricia, sorriu e tentou comunicar, através de sons vocálicos desarticulados. Isabel pegou no filho ao colo e abraçou-o contra o peito com os olhos rasos de água. E aquele milagre resgatou o brilho de colibri dos seus belos olhos verde. Ah, como seria bom partilhar esta alegria com o Luís! Ele desejara tanto aquele filho! Porém, tinha falecido num brutal acidente de avião, alguns meses depois de o Nuno ter nascido. O seu parco ordenado de empregada de escritório, a modesta pensão de viuvez de sua mãe e a falta de apoio estatal agudizaram o drama. Os seus apelos, durante mais de um ano, não passaram de gritos no deserto, junto de escolas, ministérios, centros de saúde, etc. Por fim, o Nuno começou a ser tratado numa instituição que lhe dispensava o afecto e o acompanhamento técnico especializado que se estava a tornar cada vez mais urgente. E os progressos eram bem evidentes. Faltava, apenas, um cachorrinho que o iria ajudar bastante a sair do seu isolamento. Isabel sabia que, de uma maneira geral, a criança que convive com animais se torna mais generosa, responsável e solidária. E sabia que eles são grandes auxiliares terapêuticos no tratamento do autismo, devido, sobretudo, às relações afectivas que estabelecem com as crianças.

No dia seguinte, Isabel fez as análises que o médico tinha requisitado, plenamente convicta de que o amor seria mais forte do que a morte. Movida por esta energia que tudo transforma e que não pode ser medida, preparou-se para uma complicada intervenção cirúrgica que, segundo previsões médicas, lhe iria proporcionar alguns anos de vida, junto do seu filho. E, mais uma vez, sobrevoou o mar, altas montanhas de cumes pontiagudos, fumarolas de erupções vulcânicas que não a sufocavam.


Maria João Oliveira*


[ Maria João Lopes Gaspar de Oliveira é  portuguesa e reside em Coimbra. É licenciada em Filosofia pela Universidade de Coimbra. Foi co-fundadora do Movimento de Acção Juvenil/Joaninha.
     Publicou os seus primeiros poemas no Diário de Lisboa /Juvenil (suplemento literário), criado por Mário Castrim.   Publicou, em parceria com Carlos de Oliveira, o livro O Natal da Avó Hortense (1991). Em 2001, prefaciou o livro Ao ritmo da Vida, de Isabel Jardim de Campos. Participou nas seguintes antologias:

     Ferrária – Antologia Literária-III /Abril 2006 – Edições Tribuna/Câmara Municipal de Paços de Ferreira;
      XV Jogos Florais/Edição da Câmara Municipal de Monforte-Trabalhos Premiados/ /2007;

     Antologia Um Dia de Cada Vez /2007-Edições AG /Brasil (trabalhos premiados);

     Antologia de Natal 2007/edium editores;

     XVI Jogos Florais/Edição da Câmara Municipal de Monforte –Trabalhos premiados/ 2008;

     Antologia Horizonte Nocturno /2008 - Edições AG /Brasil (trabalhos premiados);

     Antologia Poética–Amante das Leituras/2008;

     Antologia Poética –Amante das Leituras/2009.

     Prefaciou, em 2008, o livro A força de um sonho, de Maria Rita dos Santos Romão. Publicou, em Julho de 2008, o livro de contos O Polvo não sabia que o Mexilhão tinha Asas. Em Novembro de 2008, publicou o livro Não Havia Lugar para Ele (contos). Tem publicado trabalhos (prosa e poesia) em jornais, revistas e listas de literatura (Web).  Tem sido premiada em concursos literários promovidos por Câmaras Municipais, associações culturais, jornais e Edições AG (Brasil). Sobre Salgueiro Maia, é autora de um ensaio  ("A Magia de um Lenço Branco"), ao qual foi atribuído o 1º prémio nos Jogos Florais promovidos, em 2009, pela Câmara Municipal de Castelo de Vide. É colaboradora permanente do semanário Tribuna Pacense. É  membro da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA).]

Um comentário:

  1. Maria João,
    Agradeço este belo conto , a mim dedicado.
    Sinto-me honrada, e sempre sua admiradora.
    Bjs, anamerij

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